o salamandra

sábado, fevereiro 05, 2005


Espetinho Horroroso

Um passageiro do fundo vai descer, opa, lugarzinho à vista. Objetivo: sentar no banco antes que alguém o faça. Princípio: uma pessoa e uma cadeira se unindo com auxílio da lei da gravidade. Obstáculos: um idoso perto da porta e uma gestante próxima do corredor.

Sem perder mais tempo, sigo em direção ao local em questão. Mais à frente, noto as pessoas abrindo espaço para a gestante, coisa que só consigo usando meu corpanzil. O senhor idoso também ganha trânsito livre mesmo sem mostrar a identidade. Droga, com solidariedade vira covardia. Depois de muitos "com licença" e pisões no pés, consigo chegar antes. Nessa hora ainda dei uma mancada simulando alguém que precisa sentar. Não quero parecer alguém sem escrúpulos que deixa mulher grávida e velhinho de pé. Me acomodo fazendo expressão de dor para completar o papel. Falando assim parece crueldade, mas logo logo o ônibus chega na Rui Barbosa e boa parte dos passageiros descem. Só faltam... oito pontos.

Tudo bem, sei que é uma atitude um tanto rude de minha parte, porém, como a viagem é muito demorada, fazer o trajeto de pé fica quase desumano. Esse caminho na hora do almoço é ainda mais complicado. O ônibus fica lotado, o trânsito infernal e a fome pra piorar.

A viagem segue, ainda tenho tempo de pensar em outras coisas até que a entrada dos passegeiros é marcada por um cheiro diferente. Não me refiro ao odor dos ônibus ao meio-dia ou a fragrância do perfume de alguém, mas é de comida que estou falando. Rapidamente, sou surpreendido com uma passageira tirando da bolsa algo para comer, um espetinho de frango é o que parece.

Espetinho de frango, êta troçozinho asqueroso. Mais uma dessas iguarias de boteco da esquina. Frito sei lá quando, com um óleo perverso do tempo do "êpa". Isso sem falar da carne, que se bobear nem é frango, com tanto pombo por aí dando sopa. Definitivamente, um negócio que eu nunca encararia.

— Xii... olha lá - exclama um passageiro apontando para a janela.

Lá fora, um acidente parece bloquear a rua com carros da polícia de trânsito e ambulância. A viagem que já era demorada prometia prorrogação e pênaltis. Estou vendo que o almoço vai ter que esperar mais. O descontentamento tomava conta dos passageiros. Só não acabava com o ânimo de um deles, um não, uma. A mulher de pé à minha frente continuava saboreava o tal do espetinho horroroso. Tem gosto pra tudo nesse mundo.

A cena do trânsito interrompido persistia. Os guardas sinalizando o lugar, o motorista bolava rotas alternativas, o ônibus manobrando lentamente e os populares dando palpites. Dentro do coletivo, alguns passageiros reclamavam como de costume, outros desceram preferindo seguir a pé. Eu não tinha opção, ainda estava longe de casa e da cozinha. Passei, então, a distrair a mente pensando na morte da bezerra evitando ao máximo os outdoors com propagandas de comida, que parecem se multiplicar nessas horas.

Por fim conseguimos driblar o tumulto e com ônibus bem mais vazio continuamos o itinerário. A viagem ainda ia durar um bom tanto, a fome, ao que parece, também. Com o ônibus vazio, me senti à vontade para levantar a camiseta expondo a barriga que não parava de reclamar. Lembrei daqueles milhões de toneladas de alimento para as vítimas do tsunami, sendo que há fome bem aqui, dentro do Centenário/Campo Comprido. Esse mundo é injusto mesmo.

O ônibus ia chegar no terminal quando notei a mulher do espetinho de frango se levantado para ir embora. Ela tinha comido quase tudo, faltando só o finalzinho perto da base do palito. Ainda dava pra ver um bom talho de carne, que parecia bem frita. Por fora, uma casquinha espessa marcava presença, mostrando que o petisco estava bem torradinha, daquelas que quando a gente morde...

— O senhor quer me dizer algo? - a moça perguntou estranhando meu olhar insistente.
A julgar pelo cheiro, também devia estar bem temperadinho. Talvez com um leve sabor apimentado ou talvez com um sabor mais para vinagrete...

— Você está servido? - perguntou oferecendo o espetinho.
Só então despertei da hipnose com os olhos vidrados e a boca aberta para o salgado. Aceitar o restinho de um espetinho do boteco da esquina, oferecido dentro do ônibus por uma pessoa que nem conheço?

— Obrigado! - agradeci sorrindo.


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