o salamandra

sábado, fevereiro 05, 2005


Espetinho Horroroso

Um passageiro do fundo vai descer, opa, lugarzinho à vista. Objetivo: sentar no banco antes que alguém o faça. Princípio: uma pessoa e uma cadeira se unindo com auxílio da lei da gravidade. Obstáculos: um idoso perto da porta e uma gestante próxima do corredor.

Sem perder mais tempo, sigo em direção ao local em questão. Mais à frente, noto as pessoas abrindo espaço para a gestante, coisa que só consigo usando meu corpanzil. O senhor idoso também ganha trânsito livre mesmo sem mostrar a identidade. Droga, com solidariedade vira covardia. Depois de muitos "com licença" e pisões no pés, consigo chegar antes. Nessa hora ainda dei uma mancada simulando alguém que precisa sentar. Não quero parecer alguém sem escrúpulos que deixa mulher grávida e velhinho de pé. Me acomodo fazendo expressão de dor para completar o papel. Falando assim parece crueldade, mas logo logo o ônibus chega na Rui Barbosa e boa parte dos passageiros descem. Só faltam... oito pontos.

Tudo bem, sei que é uma atitude um tanto rude de minha parte, porém, como a viagem é muito demorada, fazer o trajeto de pé fica quase desumano. Esse caminho na hora do almoço é ainda mais complicado. O ônibus fica lotado, o trânsito infernal e a fome pra piorar.

A viagem segue, ainda tenho tempo de pensar em outras coisas até que a entrada dos passegeiros é marcada por um cheiro diferente. Não me refiro ao odor dos ônibus ao meio-dia ou a fragrância do perfume de alguém, mas é de comida que estou falando. Rapidamente, sou surpreendido com uma passageira tirando da bolsa algo para comer, um espetinho de frango é o que parece.

Espetinho de frango, êta troçozinho asqueroso. Mais uma dessas iguarias de boteco da esquina. Frito sei lá quando, com um óleo perverso do tempo do "êpa". Isso sem falar da carne, que se bobear nem é frango, com tanto pombo por aí dando sopa. Definitivamente, um negócio que eu nunca encararia.

— Xii... olha lá - exclama um passageiro apontando para a janela.

Lá fora, um acidente parece bloquear a rua com carros da polícia de trânsito e ambulância. A viagem que já era demorada prometia prorrogação e pênaltis. Estou vendo que o almoço vai ter que esperar mais. O descontentamento tomava conta dos passageiros. Só não acabava com o ânimo de um deles, um não, uma. A mulher de pé à minha frente continuava saboreava o tal do espetinho horroroso. Tem gosto pra tudo nesse mundo.

A cena do trânsito interrompido persistia. Os guardas sinalizando o lugar, o motorista bolava rotas alternativas, o ônibus manobrando lentamente e os populares dando palpites. Dentro do coletivo, alguns passageiros reclamavam como de costume, outros desceram preferindo seguir a pé. Eu não tinha opção, ainda estava longe de casa e da cozinha. Passei, então, a distrair a mente pensando na morte da bezerra evitando ao máximo os outdoors com propagandas de comida, que parecem se multiplicar nessas horas.

Por fim conseguimos driblar o tumulto e com ônibus bem mais vazio continuamos o itinerário. A viagem ainda ia durar um bom tanto, a fome, ao que parece, também. Com o ônibus vazio, me senti à vontade para levantar a camiseta expondo a barriga que não parava de reclamar. Lembrei daqueles milhões de toneladas de alimento para as vítimas do tsunami, sendo que há fome bem aqui, dentro do Centenário/Campo Comprido. Esse mundo é injusto mesmo.

O ônibus ia chegar no terminal quando notei a mulher do espetinho de frango se levantado para ir embora. Ela tinha comido quase tudo, faltando só o finalzinho perto da base do palito. Ainda dava pra ver um bom talho de carne, que parecia bem frita. Por fora, uma casquinha espessa marcava presença, mostrando que o petisco estava bem torradinha, daquelas que quando a gente morde...

— O senhor quer me dizer algo? - a moça perguntou estranhando meu olhar insistente.
A julgar pelo cheiro, também devia estar bem temperadinho. Talvez com um leve sabor apimentado ou talvez com um sabor mais para vinagrete...

— Você está servido? - perguntou oferecendo o espetinho.
Só então despertei da hipnose com os olhos vidrados e a boca aberta para o salgado. Aceitar o restinho de um espetinho do boteco da esquina, oferecido dentro do ônibus por uma pessoa que nem conheço?

— Obrigado! - agradeci sorrindo.


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terça-feira, janeiro 25, 2005


"Ornitorrinco, eu?"

— É, ornitorrinco. Você é um ornitorrinco?
Com uma pergunta dessas, eu me calei. A pessoa continuou.
— Pode falar, não tem problema. Você é um ornitorrinco, né?
— Bem... é... não!

A pessoa estranhou, ficou me olhando mais um tempo, não pareceu se convencer. Por fim encerrou o assunto.
A viagem de elevador durou mais alguns instantes, mas logo estávamos todos na portaria. Eu ainda estava tentando entender, pensei até em perguntar para a moça, mas quando me virei ela já tinha ido. Procurei um espelho para tentar achar algo estranho, mas eram apenas as vestimentas de sempre: jeans batido, camiseta surrada, tênis velho. Poxa vida, preciso compras umas roupas...

— O senhor me desculpe, mas não permitimos entrada de animais na loja - o vendedor foi barrando minha entrada.
— Sim, mas eu não estou com...
— Isso inclui ornitorrincos.
— Como disse?
— O senhor vai ter que sair porque não permitimos ornitorrincos no interior da loja.

De novo esse papo? Sem entender, ainda olhei pro interior da loja para ver se era uma brincadeira ou algo parecido. De relance ainda vi uma criança apontando para mim e dizendo: "Olha lá, mãe, um ornitorrinco!".
— Se o senhor não sair agora, vou ser obrigado a chamar a segurança. Ou o zoológico!

Saí de lá com um misto de revolta e confusão. Será que o mundo todo tinha se transformado numa grande pegadinha? Voltei para casa a passos largos, fugindo das calçadas movimentadas. Quando cheguei, tratei de logo apanhar a Barsa, uma enciclopédia resquício da época do colégio. Lá havia a figura de um ornitorrinco, juntamente com uma breve explicação. O ornitorrinco, segundo dizia, era um animal com pêlos e pico de pato, considerado uma forma de transição entre répteis e mamíferos. Tudo bem que eu não sou nenhum Brad Pitt, mas não tinha nada a ver comigo. Além do mais, ele vive na Austrália, não no Bigorrilho!

Peguei de volta o elevador com a certeza de saber a verdade. Quando cheguei, logo vi que os boatos circulam rápido pelos corredores do meu prédio, uma comitiva de curiosos me esperavam. Todos queriam ver o ornitorrinco do prédio.

— Olha só: é ele! - berraram apontando pra mim.
Na portaria foi aquele alvoroço, gritos de todos tipos se sucederam, "Um ornitorrinco de verdade!", "Que ornitorinco feio!", "Criatura nojenta!", "Chamem a carrocinha!".

Agora que sabia de toda verdade, podia me defender e desfazer o engano.
— Vocês só podem estar enganados. Eu não sou um ornitorrinco, entenderam? Não sou um ornitorrinco!
Por um instante eles pareceram convencidos, porém um voz na multidão gritou:

— Ele está dizendo que não é um ornitorrinco, isso é justamente o que os ornitorrincos fazem quando são descobertos!
O caos voltou, "É mesmo, ele é um ornitorrinco!", "E um ornitorrinco dos feios, diga-se de passagem!", "Uma criatura nojenta!", "Chamem a carrocinha!".

— Vocês só podem estar enganados. Está tudo explicado aqui na Barsa, os ornitorrincos tem bico de pato e eu não tenho bico de pato. Eles também são recobertos por pêlos e eu não tenho pêlos. E pra fechar, o ornitorrinco vive na Austrália. Eu não vivo na Austrália, sou daqui!

Os argumentos parecerem convencer os populares e aos poucos a conversa mudou de tom. "Viram só? Ele é diferente dos ornitorrincos", "Se não tem bico de pato ele não pode ser um", "Não se esqueça que também não tem pêlos".

De repente a discussão foi interrompida por um grito desesperado:
— Que coisa mais horrível, um ornitorrinco sem bico e sem pêlos! Por favor, chamem a carrocinha!!



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terça-feira, janeiro 18, 2005


A monótona rotina do laboratório

O tempo não passa e eu louco para ir embora, não agüento mais ficar aqui. Mês de janeiro, o verão fervendo nas praias, sol, mar e eu aqui dentro desse laboratório. Por mim eu saia agorinha, deixava os animais e me mandava. Tem bastante comida, eles iam se virar bem, eu é que ia dar no pé.

— Sabe onde é que está o éter?
— Éter? Na estante aí de baixo.

Ficar olhando essa bicharada, basicamente é isso que eu faço. Fico de tocaia, vendo quando acordam, o que estão aprontando, pra onde estão indo. Não é lá uma tarefa muito difícil, mas tem que ter muita paciência. Quando eu cheguei aqui não conhecia direito esses bichos, foi uma tremenda descoberta. Tudo que eles faziam era novidade, levou um bom tempo para me acostumar. Conseguir distingui-los foi outro desafio, porque olhando assim eles são todos iguais. Tive que aprender a reparar nos pequenos detalhes de cada um, os olhos, as orelhas...

Depois da fase de descoberta é que as coisas começam a ficar monótonas. Tudo que a gente tem que aprender sobre eles a gente já aprendeu. Eles também já se acostumaram com a gente. Antes dava pra sentir que ficavam morrendo de medo, se tremiam todos, agora conseguem até relaxar.

— Não está aqui não. A estante tá vazia.
— Xii... será então que acabou?
— Não tem mais éter?

Se antes eu me divertia no laboratório, agora não passava de uma rotina. Todo santo dia, eles fazem a mesma coisa e eu sempre de vigia. Antigamente achava que o trabalho nos laboratórios era emocionante, igual nos filmes americanos. Aquilo, sim, que é um trabalho legal, onde os cientistas fazem poções coloridas, saindo fumaça e sempre descobrem alguma coisa importante. Isso quando não acontece algum acidente de proporções catrastróficas. Por outro lado, aqui nesse laboratório quando quebram alguma coisa a única coisa que se vê é estagiário levando bronca, não tem a menor graça. Droga, se ao menos açoitassem um pouco mais...

— Espera - buscou um vidro na prateleira. — Tem esse daqui, mas tem só um restinho. Você vai precisar de muito?
— Não, é só para sacrificar o camundongo.
— Ahn tá, então esse daqui serve.

Divertimento, taí uma coisa que nunca vou ter por aqui. No começo eles ainda brincavam comigo, a gente se divertia um bocado. Davam uns pedaço de papel que eu estraçalhava em dois tempos. Eles gostavam de ver e me davam mais coisas. O problema foi quando mordi o dedo de um deles, desde então acabaram-se as brincadeiras.

— Tome aqui um pedaço de algodão pra passar o éter. Só que faça isso dentro de uma cuba, senão aqui vai ficar cheirando isso um tempão.
— Não se preocupe, eu sei o que fazer.

Agora que não tem mais brincadeiras, vivo tentando fugir. Outro dia mesmo fiquei o dia inteiro roendo a grade, mas não adiantou nada. E pensar que ainda me chamam de "roedor".

Olha só, foi só falar que um deles resolveu aparecer, carregando um chumaço de algodão. Ele agora está molhando o algodão com alguma coisa. Será que é de comer? Não sei, mas eu acho que daqui a pouco ele vai jogar isso aqui dentro. Tomara!

— Ó, não esqueça de depois jogá-lo no saco de lixo biológico. Outro dia você esqueceu e eu que tive que limpar.
— Eu estava apurado e acabei me esquecendo, desculpe. Hoje eu só tenho esse para sacrificar, pode deixar que quando terminar eu limpo tudo por aqui.
— Vai tirar o cérebro?
— É, desse aqui eu tiro o cérebro. Só não sei se o experimento vai dar certo com ele.
— Por quê?
— Não sei. De todos esse aqui era o mais burrinho, coitado...


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terça-feira, janeiro 11, 2005


Paixão cor-de-rosa

Ela estava saindo de uma loja, isso eu me recordo bem. Estávamos perto de uma dessas datas importantes e o shopping estava explodindo de gente. Até hoje não entendo como pude reparar nela em meio aos corredores lotados daquele lugar. Mesmo assim, lembro que até deixei as sacolas se esparramarem de tão surpreso que fiquei. Tudo por causo dela: a menina do vestido cor-de-rosa.

Até então aquele tinha sido mais um dia de compras para um homem: chato e triste. Chato por ter que canelar atrás dos melhores preços. Triste quando a gente percebe que mesmo os melhores não são tão melhores assim. A monotonia estava instaurada até o momento que bati os olhos naquela moça de vestido cor-de-rosa. Ela estava saindo da loja com a pressa habitual de fim de ano. Imediatamente segui atrás dela, eu tinha que ficar por perto de qualquer jeito.

Por onde ela ia eu ia atrás, a tática era essa. Não me perguntem por que eu estava fazendo aquilo, só estava seguindo os instintos. Nós, homens, fazemos isso com freqüência, sabe, pelo menos quando corremos atrás de mulheres e bolas de futebol. Os mesmos instintos que me faziam detestar as compras de fim de ano agora me faziam perseguir a tal mulher do vestido cor-de-rosa. Era difícil entender e só continuando essa busca frenética eu poderia saber o porquê.

Após caminhar por uma dezena de vitrines e lojas, a menina do vestido cor-de-rosa resolveu se sentar para descansar. Foi só então que pude observar com calma a donzela que atraía minha atenção. Para não dar bandeira, me coloquei num ponto meio distante onde não levantaria maiores suspeitas. Foi então que as análises masculinas começaram.

Estava calor aquele dia e o shopping abarrotado tornava as coisas ainda mais escaldantes. Por todos os lado as pessoas se abanavam, o que dava pistas de que o ar-condicionado não estava funcionando direito. A menina em questão se refrescava com um sorvete, numa cena de dar água na boca. O vestido cor-de-rosa estava grudado no corpo, destacando sua silhueta bem desenhada. Eu precisava falar com ela.

— Posso me sentar aqui? - uma mulher interrompe meu devaneio.

— Claro... eu... eu só vou tirar essas sacolas daqui.

Me organizo com os embrulhos e quando retomo minha vigília noto que a moça do vestido cor-de-rosa não está mais lá. Ainda procurei pelos quatro cantos, porém sem conseguir avistar minha musa. Rapidamente recolho os embrulhos e saio em sua busca. Chego onde ela estava sentanda, mas nada indica aonde ela possa estar. Coço a cabeça sem idéias até que a luz refletida do vestido cor-de-rosa me dá sua localização. Ela estava indo para o segundo piso e é para lá que eu vou!

As coisas em cima não estavam muito melhor, uma multidão de pessoas ainda me separava da menina do vestido cor-de-rosa. Apesar disso, ainda conseguia identificá-la pelo andar apressando e o tecido esvoaçante. Apertei o passo para por fim a essa angústia e falar com ela, saber pelo menos o nome.

— Com licença, eu preciso falar com você! - a surpreendi num dos corredores depois de uma corrida.

— O quê?

— Eu preciso falar com você!

— Com licença, estou com pressa...

— Prometo que vai ser rápido. Eu só gostaria de saber uma coisinha, pelo menos o nome!

— Meu nome? - começou a ajeitar o cabelo toda vaidosa. — Eu me chamo Camila.

— Tá, mas eu não quero saber o seu nome.

— hã??

— Queria saber o nome da loja onde você comprou esse vestido MA-RA-VI-LHO-SO! Adorei esse corte justinho, amei esse tecido esvoaçante e achei essa cor um arraso! Ele é simplesmente tudo de bom!!


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terça-feira, janeiro 04, 2005


Avestrusiness


— Dinheiro, muito dinheiro.

— Oi? - pergunto para saber se a conversa é comigo.

— Estou falando de dinheiro e dinheiro de verdade!

Interrompo a leitura do jornal para tentar identificar aquela voz. Quando olho, dou de cara com Clédisson Craveira com um sorriso de orelha à orelha.

— Tenho uma coisa muito importante para lhe contar - disse se inclinando para cochichar. - Eu vou ficar rico!

— Comé que é?

— Vou ficar rico!

— Você vai o quê?

— Ri-co!

Espere um pouco. Por um instante cheguei a ficar surpreso, achando que podia ser verdade, mas logo depois recobrei a razão. Antes de tirar qualquer conclusão achei melhor deixar Clédisson Craveira terminar a história.

— Estou prestes a entrar de sócio em uma jogada quente, um verdadeiro negócio da China! Capital com retorno garantido!

Agora estou entendendo, mais uma vez o Clédisson Craveira tinha um plano infalível para enriquecer do dia pra noite. Não era a primeira vez que ele surgia com uma dessas "jogadas quentes", "negócios da China". Só espero que agora não acabe mal como daquela vez em que cismou de vender empadão com recheio de celular na porta de penitenciárias.

— Sei que cê tá querendo saber qual o empreendimento com capital de retorno garantido, não é? Pra você eu até conto porque sei que é de confiança - me entregou uma pasta de couro preta com letras douradas onde se lia "Agrobusiness".

"Uau!", pensei comigo mesmo, pelo jeito a coisa era séria pra valer. Não parecia nada de delito, criminoso, nem ao menos contraventor. Quando abri a pasta finalmente eu comecei a entender o que se passava. Em letras garafais, o título tinha os seguintes dizeres: "Como criar avestruz?".

— Criar avestruz? Você está pensando em criar avestruz?

— É o negócio do momento!

— Poxa vida... - disse nitidamente impressionado pelo conteúdo da pasta, repleto de plantas e esquemas. - Vejo que a coisa é pra valer...

— "Um negócio tão seguro que tem até seguro!"

Nessa hora me lembrei do comercial que passa na TV, aquele em que o Beto Carreira fala das maravilhas em se criar avestruz. Só pode ser daí onde o Clédisson tirou essa idéia estranha.

— Criar avestruz, hein? Nunca pensei que você fosse fazer isso, Clédisson. Nem sabia dessa ligação com o campo...

— Campo, eu? Não, não vou precisar disso. Pretendo começar a criação aqui mesmo, em casa. Só depois que o dinheiro começar a entrar é que vou expandir o negócio. Tudo questão de tempo, é verdade.

— Peraí, criar avestruz em casa? Mas você mora em apartamento!

— Calma, já está tudo planejado. Já demarquei certinho o espaço onde vou colocar os bichinhos.

— "Bichinhos"? Você já viu o tamanho deles? Um avestruz deve ter pelo menos uns 2 metros!

— Fique calmo, fique calmo. O teto lá de casa tem uns 2 metros e meio...

— Você só pode estar louco... Mas me diga uma coisa, depois você vai abatê-los assim, dentro de casa?

— Abater? Você diz matar os bichos?

— Sim, ué? Abater os avestruzes, para tirar a carne...

— Você não está entendendo, eu vou criar os avestruzes, não tem nada de matar ninguém.

— Sim, mas as pessoas criam para depois tirar a carne.

— Não fale bobagens, onde já se viu comer carne de avestruz?

— Qual o problema? A carne de avestruz é uma iguaria fina hoje em dia.

— Carne de avestruz...

— Você não acredito, né? Então o que você vai fazer com os avestruz depois?

— Depois? A gente vende... sei lá, vende pros circos, pet shop... vende pra polícia! Os avestruz são treinados para farejar tóxico!!

— Avestruz farejadores - repeti prendendo a gargalhada.

— Me dá isso aqui - disse tomando a pasta. - Já vi que cê não entende nada de avestrusiness...


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terça-feira, novembro 16, 2004


Simples canetas?


Já vou logo avisando pra que as coisas fiquem claras desde o início: nunca acreditei realmente nessa história. Nunca levei isso muito a sério e gostaria que isso ficasse registrado.

Tudo começou em um desses e-mails absurdos que algumas pessoas inconvenientes insistem em me enviar. É claro que eu jamais cometeria a deselegência de denunciar a pessoa que se diverte com mensagens pouco adequadas e até certo ponto obscenas. Por outro lado, me sinto na obrigação de alertar às autoridades da necessidade de um tratamento psicológico para Luiz Cláudio da Luz.

O tal e-mail lançava uma dessas teorias absurdas que povoam a internet. Obviamente, eu não seria otário de acreditar em mais uma dessas "teorias da conspiração", mesmo assim resolvi ler a mensagem. A teoria em questão falava das canetas bic, aliás, do perigo existente por trás de uma simples caneta bic.

Canetas bic, vocês sabem, aquelas esferográficas que todo estudante usa ou pelo menos alguma vez já usou. Segundo o e-mail, escrever seria apenas uma das funções caneta bic. Elas seriam, na verdade, microfones e câmeras usados para monitorar as pessoas. Esse monitoramento seria feito por ninguém menos que extra-terrestres!

Sim, extra-terrestes! Extra-terrestes vindos de outros planetas!

Os extra-terrestes teriam feitos câmeras e microfones camuflados de canetas para bisbilhotar o que nós humanos estariam fazendo. O que realmente faria sentido, pois tudo que é feito é previamente planejado e depois escrito. E escrito por uma maldita caneta bic. Não vou dizer que acreditei, mas naquela noite me certifiquei de ter fechado bem o estojo antes de dormir.

As canetas bic serem na verdade câmeras alienígenas, onde já se viu tamanha loucura? Tudo bem que no e-mail eles contavam algumas coisas extranhas, como, por exemplo, o fato de ninguém saber de onde as canetas bic vêm ou onde são feitas. Além disso, o fato delas nunca terem mudado de forma, serem assim desde quando vieram pela primeira vez, isso em... peraí? Quando é que elas surgiram?

Estranho, estranho... na minha mente alguns pensamentos absurdos começaram a surgir. Vai que, numa dessas, o alerta tem razão e todos nós estivermos sendo observados nesse exato instante? As canetas bic estão em toda parte, não tem como fugir. Os e.t.s nos veriam fazendo tudo, comendo, dormindo, se trocando... eles nos veriam até quando estivessemos lendo aquele e-mail e descobrindo a verdade. A verdade que eu estou descobrindo agora!

Como que por um truque de mágica, nessa exato momento meus pensamentos são interrompidos por um som na escrivaninha, algo que caiu. Quando vou ver, quase caio pra trás. É uma caneta, uma caneta bic!

Num misto de pavor e fúria, destruo a caneta aos berros com uma pisada vigorosa. Está claro que os e.t.s sabem que eu descobri a verdade e farão de tudo para me impedir. Se eu quiser fugir, não posso mais ser visto por eles, isto é, tenho que destruir todas as canetas bic por perto. Rapidamente, vasculho a mesa onde elas possam estar escondidas. As que encontro, destruo no ato. Mas não tem jeito, meu apartamento já está cercada por elas, o melhor é sair de casa.

Mesmo desarrumado, saio em disparada carreira pela rua. Por distração, acabo trombando com um grupo de estudantes. Um deles não consegue evitar a queda do material de aula, deixando um punhado de canetas bic cairem no chão. Dou um sonoro grito ao ver todas aquelas câmeras alienígenos no chão me olhando. Antes que tenha tempo de fugiu, sou dominado e levado por enfermeiros.

Quando recobro a consciência, noto que estou num leito de hospital. Tento me mover e quando percebo estar amarrado. Estico o pescoço e vejo minha ficha de internamento. Em letras garrafais aparece escrito "dobrar a medicação". Olho ao redor e não vejo nenhuma caneta bic, por outro lado, a ficha de internamento parece ter sido preenchido a caneta!


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terça-feira, novembro 02, 2004


Comemorações do Dia de Finados

— Rápido, vamos logo com isso! – disse puxando o garoto pelo braço. – Seu Isidoro, o senhor não vem?

— Espere um pouco, estou colocando o paletó.

— Colocando? Poxa, não dá pra ser mais rápido?

— Prontinho, prontinho – disse saindo do quarto estufando o peito. – Elegante, eu sei, pode dizer...

Seu Isidoro tinha colocado o paletó azul marinho, como sempre fazia todos os anos. Aposto que também iria contar a história do paletó, que foi presente de sei lá que tia e que trouxe de sei lá qual lugar. Ele adorava repetir essa história cada vez que veste o traje.

— Não sei se eu já te contei, mas esse foi um presente da minha tia Cotovina que trouxe o paletó lá da Catalunha!

— Sei, sei... Tia Cotovina da Catalunha... agora que terminou podemos ir?

Os três enfim estavam prontos, iam repetir a tradicional cerimônia de 2 de novembro. Como toda família que se preza, os Souza Passos também iriam homenagear seus antepassados, deixando uma lembrança e fazendo umas orações. Sendo assim, seu Isidoro, dona Salete e o pequeno Basílio não podiam faltar. Para isso, se produziram à altura, com direito a trajes escuros e cabelos lambidos. Eles não podiam fazer feio frente ao resto da família, embora os parentes nunca tenham reparado muito neles.

Andando calmamente para não amassar os trajes, eles chegaram à entrada do cemitério abarrotado de gente. Mesmo com toda dificuldade em transitar naquela confusão, no fundo eles estavam se divertindo muito, os cemitérios se tornam um ambiente bem vivo nessa época do ano. Sem qualquer indicação, eles sabiam como chegar ao lugar certo. Quando se aproximaram, notaram que quase todos estavam lá.

O seu Isidoro ficou animado em vê-los depois de tanto tempo. Dona Salete ficou impressionada como todos estavam mudados, parece até que o tempo voa. Só o pequeno Basílio que estava indiferente, pois tinha ido para tantos Dias de Finados que nem se surpreendia mais. Vendo a família em silêncio ao redor do espaço dos Souza Passos, os três conversavam discretamente.

— É impressão minha ou a Lucia está mais cheinha dessa vez? – disparou dona Salete.

— O quê?

— Engordando, você sabe, ela está ficando cada vez maior.

— Pelo amor de Deus... – Isidoro reprovou o tom fuxiqueiro da conversa.

— Calma, só estou comentando.

— Numa dessas ela tá grávida – Basílio embarcou na especulação.

— De novo?

— Se isso for verdade, você ganha mais um sobrinho, Basílio.

— Legal!

— Legal é? E a conta bancária do seu irmão, onde é que fica?

— Dona Salete, dona Salete, sempre procurando o lado trágico das coisas...

— Isso porque não é com você. Mas também ninguém mandou o Antônio ficar aí, fazendo filho ao atacado.

— Esse meu irmão caçula não tem jeito mesmo...

As orações pareciam ter cessado no túmulo dos Souza Passos, aos poucos os familiares se preparavam para ir embora. Com cumprimentos sutis, a parentada se despediu e abandonou o cemitério movimentado. Os três ainda permaneceram lá um tempo, curtindo as flores novas.

— Cada ano parece que ficam menos tempo – disse Salete desgostosa.

— Pelo menos vieram.

— Você tá feliz porque sempre é o mais festejado, olha só quantas flores você ganhou, Basílio?

Seu Isidoro estava certo, o túmulo de Basílio era sempre o mais homenageado. Eram tantas flores que até tampavam a foto do menino que foi atropelado quando corria atrás da bola de futebol. Dona Salete também tinha razão de estar chateada, suas irmãs não vieram visitá-la novamente. Qualquer hora vai descobrir que elas morreram há algumas décadas. Três para ser mais exato.

— Estão vendo aqui? – dizia seu Isidoro mostrando a foto colada na lápide. – Esse sou eu alguns anos mais moço vestindo esse paletó. Não sei se já contei, mas ele foi um presente da tia Etelvina, que comprou na sua viagem pela Sicília.

— Sicília?

— Sicília.



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terça-feira, outubro 26, 2004


Bandeiras contra o desemprego

As eleições já estão chegando e em breve todo aquele burburinho eleitoral vai acabar com o barulhinho da urna eletrônica. Será um alívio danado. Depois disso, tchau e benção, não quero ouvir falar de política tão cedo. Eleição, então, nem a de síndico do meu prédio.

Tudo bem, sei que não sou nenhum cidadão exemplar no que diz respeito a eleição, mas é que esse ano as coisas parecem mais pegajosas do que o habitual. Ainda bem que nem todo mundo pensa como eu. O seu Arlindo, por exemplo, ele está chateado com o término do período eleitoral e tem um bom motivo para isso. Para que você entenda melhor, vou começar do início.

Mais uma vez as páginas dos classificados não traziam nenhuma boa notícia, tudo porque Arlindo não tinha muito estudo, experiência também não, pistolão idem. A salvação da lavoura foi a eleição, que recrutou milhares de pessoas esse ano. Como Arlindo não era lá um sujeito muito articulado, o encaixaram num serviço mais braçal. Braçal e braçal mesmo, era ele quem agitava a bandeira com o nome e número do candidato.

Embora tenha achado um pouco complicado no início, aos poucos foi pegando o jeito da coisa. Não demorou muito começou a chamar atenção pela maneira enérgica que tremulava a bandeira. Enquanto os outros precisavam de um vento forte para esticar a legenda do candidato, seu Arlindo reinava absoluto nas esquinas e cruzamentos do centro da cidade.

O 1o turno veio e para a infelicidade de Arlindo, seu candidato levou bomba: não fez muitos votos e nem ficou pro 2o turno. “Será que foi culpa minha?”, chegou a pensar. Por sorte, quando foi ao comitê acertar as contas, ficou sabendo da boa notícia. Um dos seus colegas já tinha acertado trabalhar para o outro candidato e precisava de alguém para cuidar da bandeira. Esse alguém era Arlindo.

Naquele dia, ele voltou todo feliz pra casa. Quando chegou foi outra surpresa, um sujeito engravatado estava convidando para trabalhar na campanha do outro candidato. Na empolgação ele aceitou mesmo sem saber como faria isso.

No final das contas, tudo se acertou. De manhã ele tremulava a bandeira azul de um candidato, de tarde a amarela do outro. Era tudo que ele tinha pedido a Deus, não desagradar nenhum dos lados e ainda ganhar para isso. Poxa, desse jeito ele nem se incomodaria de passar o resto da vida fazendo isso.

— Não seja bobo, Arlindo! – alertou sua esposa. – No final das eleições eles vão te chutar pra fora!

Ela tem razão – ele pensou –, quando acabarem as eleições vão acabar as bandeiras. Não demorou muito Arlindo se lembrou do caderno de classificados repleto de anúncios, mas nenhum para “tremulador de bandeira”. Precisava descobrir uma maneira de sobreviver depois das eleições.

Arlindo matutou o dia inteiro. As pessoas que o conheciam sabiam que algo estava errado pela maneira que estava balançando a bandeira. Por fim chegou à resposta e, de tão feliz, pediu para ter uma palavrinha com o senhor candidato.

— O plano vai salvar não só o meu emprego, mas o de todos agitadores de bandeira da cidade!

O candidato prestava muita atenção, Arlindo começou a explicar:

— Basta tirar todas as placas de trânsito da cidade. As placas, você sabe, eles só existem para atrapalhar as pessoas, sem falar que quando a gente está distraído...

— Sim, sim. Tirar as placas, e daí?

— Tirar as placas e substituir por pessoas agitando bandeiras.

— Como é? – o candidato tentou entender.

— A prefeitura tiraria a placa de trânsito e no lugar colocava uma pessoa agitando uma bandeira de “proibido estacionar”, por exemplo.

— hum?

— Ou então na estrada uma pessoa agitando uma bandeira escrito “cuidado queda de barreiras”.
Por fim, o candidato agradeceu a preocupação do seu Arlindo e disse que sua sugestão será encaminhada à futura Secretaria de Qualquer Coisa. Depois de um aperto de mão com direito a foto e um adesivo para pôr no carro (que não tinha), Arlindo voltou para casa intrigado. Queria saber como ele levaria sua sugestão se não havia sequer anotado. Não sei, algo me diz que ele não deu a menor bandeira.


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terça-feira, outubro 19, 2004


Vingança mal direcionada

— E aí, gordo burro!! Gordo burro!!

Imediatamente o sangue lhe subiu no rosto. Ele não pôde acreditar estar ouvindo aquela ofensa novamente. Suas mãos não seguraram a ira e ele amassou o jornal sem perceber. Virou-se para trás e só deu tempo de ver a moto saindo dando duas buzinadinhas de deboche.

— Maldito filho da... – resmungou baixinho.

Uma perseguição, só podia ser uma coisa desse tipo, coisa de filme de terror. Se estavam tentando deixar o Bernardo louco, finalmente estavam conseguindo.

Mas calma lá, sei que está parecendo estranho, mas deixe contar a história desde o início. Esse caso tem raízes profundas e só é possível entender se pudermos rebobinar a fita quase vinte anos atrás, quando Bernardo era apenas um garotinho como qualquer outro.

Ele tinha por volta dos seus 13 anos, na época em que começou a matar aula para ficar zanzando pela rua. Outra mania que tinha era economizar a passagem de ônibus para poder se encher de doces. Depois de matar tanta aula e comer tantas porcarias, ele acabou se tornando uma figura roliça e mal de notas. Foi a partir daí que começou tudo.

— E aí, gordo burro!! – escutou quando estava na banca de revista lendo gibi.

Quando ouviu, ele estranhou. “De quem devem estar falando?”, chegou a pensar. Mas não havia dúvidas, estava claro que o grito tinha sido direcionado para dentro da banca, onde só havia ele. O tal “gordo burro” que estava falando era na verdade Bernardo.

No dia seguinte foi a mesma coisa. Quando foi para a banca e lia um gibi, teve a leitura interrompida pelo mesmo grito estrondoso:

— E aí, gordo burro!!

Aquilo era pra ele. E quem poderia ter sido? O mesmo patife de ontem, pensou. Bernardo estava visivelmente transtornado, aquela provocação estava começando a irritar. E só estava começando, porque na verdade aquilo se repetiria no dia seguinte, no outro dia, depois e depois... Bernardo não agüentava mais ouvir aquilo, só não conseguia descobrir o que irritava mais, se era ser chamado de gordo ou de burro. Detestava as duas coisas principalmente porque ambas tinha uma pontinha de verdade.

Um dia, porém, ele resolveu dar um basta. Decidiu que não iria mais ser chamado de gordo ou de burro. Ele devia ter lá seus 21 anos quando decidiu encarar de frente o problema. Resolveu que finalmente iria tocar os estudos pra frente para ser respeitado, fez um supletivo e rapidinho recuperou os anos perdidos. Ainda assim, quando arrumava um tempinho extra, ia sempre fazer uma visita à banca de revista, mesmo assim sempre que chegava era recebido com a mesma homenagem:

— E aí, gordo burro!!

Sim, mesmo depois de tanto tempo, o cretino metido a engraçadinho continuava com as provocações. Mesmo assim Bernardo não desanimava, muito pelo contrário, essas coisas só lhe davam mais força para seguir em frente.

Se o estudo ele já estava recuperando, ainda faltava se livrar da fama de gordo. Começou então um plano ambicioso, que era alcançar o seu peso ideal. Isso sim daria muito trabalho. Após muitos meses de dieta, ele finalmente deu-se por satisfeito, conseguiu perder quase duas arrobas. Isso alguns meses antes de passar no vestibular.

Não precisa dizer que ele se formou e virou um advogado de sucesso, mas nada disso importou quando ele ouviu aquela maldita voz o chamando de gordo e burro mais uma vez. Ele precisava acabar com aquela assombração que o perseguia há tanto tempo. Mas agora Bernardo tinha um plano, um plano para acabar com o palhaço das grosserias.

Ainda de madrugada, ele retirou a tampa do bueiro para derrubar o motoqueiro maluco. Para reforçar, Bernardo cobriu o chão com cacos de vidro para aumentar os ferimentos. Por fim, encheu o caminho de tábuas e madeiras com pregos enferrujados na ponta para deixar o serviço completo. Dentro da banca ele ficou folheando uma revista a espera de tudo.

— E aí, gordo burro! – foi o grito que antecedeu um baita acidente.

Prontamente, Bernardo saiu da banca com a expressão de vitorioso. Quando chegou lá encontrou um senhor todo arrebentado, com prego e vidro por todo lugar.

— Gordo burro, me ajude aqui...

Bernardo ainda estranhou, pois nunca tinha visto esse sujeito. Enquanto pensava em atender, seu Adão, o dono da banca de revista, foi correndo acudir o moço.

— Antônio, que foi isso, meu filho?!

— Não sei, pai. O bueiro estava destampado e cai nesses pregos... e cacos...

— Vou pegar o metiolate!

— Metiolate o caramba! Chame a ambulância!

— Tem razão, tem razão!

O seu Adão voou com seu para dentro para o telefone, o filho ainda estava lá no meio fio todo estrupiado.

— Metiolate... só podia ser idéia do gordo burro...



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terça-feira, outubro 12, 2004


Aparelho que só confundem

Quando olhei para a Bia naquela festa quase não reconheci. É incrível a diferença que faz um simples aparelho nos dentes. Ela colocou aparelho e parece ter ficado totalmente diferente. Tudo bem que as plaquinhas de metal estão apenas nos dentes, mas alguma coisa além disso parece ter mudado. Pena que nesse caso a mudança não foi pra melhor.

— Pois é, eu gostava mais de como era antes... – cheguei puxando assunto com o Marcelo.

— hein?

— O sorriso dela – apontei discretamente. – Eu gostava mais como era antes. Antes do aparelho.

— humm... você diz isso por causa do metal...

— Não, é que eu gostava do jeito dos dentes dela antes.

— Quer dizer, tortos?

— Não eram tão tortos assim. Só não eram perfeitos.

— Eram encavalados, parecia engavetamento na BR – exagerou Marcelo.

— Tudo bem, que seja. De qualquer forma eu preferia antes do que com esse metal todo na boca.

Mas o que adianta? O negócio é me acostumar com o sorriso prateado para que, quem sabe daqui uns anos, vê-la com os dentes perfeitos, igual comercial da Colgate. Aquele sorrisinho engraçado da Bia nunca mais.

— Não sei se você reparou – retomei o papo. – Mas não foram só os dentes dela que mudaram.

— Como é?

— Sei que não faz sentido, mas desde que colocou aparelho notei que algumas coisas estão diferentes.

— Além dos dentes?

— Sim, além dos dentes, a começar pela postura. De uns tempos pra cá a postura dela está diferente.

— Postura? Eu não notei nada...

— Ela está andando diferente. Já ouvi falar em aparelhos que mudam a boca da pessoa, mas que mudam as costas é a primeira vez.

— Como assim? – perguntou sem entender nada.

— Eles devem ter mexido na coluna vertebral ou coisa assim... Deve ter sido para corrigir a mastigação.

— Cara, eu acho que não tem nada a ver...

— Tudo bem, mas essa não foi a única mudança. Até o cabelo dela mudou de cor. Antes era castanho e agora está loiro.

— Era castanho? Quando eu conheci já era loiro.

— Poxa, então você deve conhecê-la há bem pouco tempo...

— Pouco tempo? Na verdade desde o colegial!

— Então você não deve ser muito bom em notar essas coisas...

O Marcelo sempre foi um cara meio distraído. Distraído para não falar burrinho, daqueles que demoram para cair a ficha. Mas sabe como é, amigo a gente sempre perdoa. Quando encontra na rua cumprimenta e dá uns tapinhas nas costas. Às vezes aproveita e cola um cartaz nas costas “Eu sou, mas quem não é?”, mesmo assim continua sendo amigo.

— Mas sabe, a maior mudança vai além do cabelo e da postura.

— Qual é?

— Comecei a reparar agora no jeito dela. Ela está completamente mudada.

— Mudada?

— Sim, mudada. Ela que sempre foi mais quieta e discreta, agora está toda falante, dando atenção para todo mundo...

— É...

— E sem falar que está dando bola pra tudo quanto é homem.

— Como é?? – ficou indignado.

— É sério, ela está atirando pra todo lado. Quem chegar primeiro leva.

— Olha aqui, cara – começou a arregaçar as mangas. – Veja lá como fala da minha namorada!

— Namorada? Você está namorando a Bia?

— Que Bia, o quê? Ela se chama Roberta!

— Roberta?

Ainda levei alguns instantes para entender, só então percebi porque a Bia estava tão diferente. Simplesmente porque não era a Bia.

— Marcelo, esqueça o que eu disse, tinha confundido... Marcelo?

— Me chamo Agnaldo – respondeu com punho serrado.



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