o salamandra

terça-feira, novembro 16, 2004


Simples canetas?


Já vou logo avisando pra que as coisas fiquem claras desde o início: nunca acreditei realmente nessa história. Nunca levei isso muito a sério e gostaria que isso ficasse registrado.

Tudo começou em um desses e-mails absurdos que algumas pessoas inconvenientes insistem em me enviar. É claro que eu jamais cometeria a deselegência de denunciar a pessoa que se diverte com mensagens pouco adequadas e até certo ponto obscenas. Por outro lado, me sinto na obrigação de alertar às autoridades da necessidade de um tratamento psicológico para Luiz Cláudio da Luz.

O tal e-mail lançava uma dessas teorias absurdas que povoam a internet. Obviamente, eu não seria otário de acreditar em mais uma dessas "teorias da conspiração", mesmo assim resolvi ler a mensagem. A teoria em questão falava das canetas bic, aliás, do perigo existente por trás de uma simples caneta bic.

Canetas bic, vocês sabem, aquelas esferográficas que todo estudante usa ou pelo menos alguma vez já usou. Segundo o e-mail, escrever seria apenas uma das funções caneta bic. Elas seriam, na verdade, microfones e câmeras usados para monitorar as pessoas. Esse monitoramento seria feito por ninguém menos que extra-terrestres!

Sim, extra-terrestes! Extra-terrestes vindos de outros planetas!

Os extra-terrestes teriam feitos câmeras e microfones camuflados de canetas para bisbilhotar o que nós humanos estariam fazendo. O que realmente faria sentido, pois tudo que é feito é previamente planejado e depois escrito. E escrito por uma maldita caneta bic. Não vou dizer que acreditei, mas naquela noite me certifiquei de ter fechado bem o estojo antes de dormir.

As canetas bic serem na verdade câmeras alienígenas, onde já se viu tamanha loucura? Tudo bem que no e-mail eles contavam algumas coisas extranhas, como, por exemplo, o fato de ninguém saber de onde as canetas bic vêm ou onde são feitas. Além disso, o fato delas nunca terem mudado de forma, serem assim desde quando vieram pela primeira vez, isso em... peraí? Quando é que elas surgiram?

Estranho, estranho... na minha mente alguns pensamentos absurdos começaram a surgir. Vai que, numa dessas, o alerta tem razão e todos nós estivermos sendo observados nesse exato instante? As canetas bic estão em toda parte, não tem como fugir. Os e.t.s nos veriam fazendo tudo, comendo, dormindo, se trocando... eles nos veriam até quando estivessemos lendo aquele e-mail e descobrindo a verdade. A verdade que eu estou descobrindo agora!

Como que por um truque de mágica, nessa exato momento meus pensamentos são interrompidos por um som na escrivaninha, algo que caiu. Quando vou ver, quase caio pra trás. É uma caneta, uma caneta bic!

Num misto de pavor e fúria, destruo a caneta aos berros com uma pisada vigorosa. Está claro que os e.t.s sabem que eu descobri a verdade e farão de tudo para me impedir. Se eu quiser fugir, não posso mais ser visto por eles, isto é, tenho que destruir todas as canetas bic por perto. Rapidamente, vasculho a mesa onde elas possam estar escondidas. As que encontro, destruo no ato. Mas não tem jeito, meu apartamento já está cercada por elas, o melhor é sair de casa.

Mesmo desarrumado, saio em disparada carreira pela rua. Por distração, acabo trombando com um grupo de estudantes. Um deles não consegue evitar a queda do material de aula, deixando um punhado de canetas bic cairem no chão. Dou um sonoro grito ao ver todas aquelas câmeras alienígenos no chão me olhando. Antes que tenha tempo de fugiu, sou dominado e levado por enfermeiros.

Quando recobro a consciência, noto que estou num leito de hospital. Tento me mover e quando percebo estar amarrado. Estico o pescoço e vejo minha ficha de internamento. Em letras garrafais aparece escrito "dobrar a medicação". Olho ao redor e não vejo nenhuma caneta bic, por outro lado, a ficha de internamento parece ter sido preenchido a caneta!


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terça-feira, novembro 02, 2004


Comemorações do Dia de Finados

— Rápido, vamos logo com isso! – disse puxando o garoto pelo braço. – Seu Isidoro, o senhor não vem?

— Espere um pouco, estou colocando o paletó.

— Colocando? Poxa, não dá pra ser mais rápido?

— Prontinho, prontinho – disse saindo do quarto estufando o peito. – Elegante, eu sei, pode dizer...

Seu Isidoro tinha colocado o paletó azul marinho, como sempre fazia todos os anos. Aposto que também iria contar a história do paletó, que foi presente de sei lá que tia e que trouxe de sei lá qual lugar. Ele adorava repetir essa história cada vez que veste o traje.

— Não sei se eu já te contei, mas esse foi um presente da minha tia Cotovina que trouxe o paletó lá da Catalunha!

— Sei, sei... Tia Cotovina da Catalunha... agora que terminou podemos ir?

Os três enfim estavam prontos, iam repetir a tradicional cerimônia de 2 de novembro. Como toda família que se preza, os Souza Passos também iriam homenagear seus antepassados, deixando uma lembrança e fazendo umas orações. Sendo assim, seu Isidoro, dona Salete e o pequeno Basílio não podiam faltar. Para isso, se produziram à altura, com direito a trajes escuros e cabelos lambidos. Eles não podiam fazer feio frente ao resto da família, embora os parentes nunca tenham reparado muito neles.

Andando calmamente para não amassar os trajes, eles chegaram à entrada do cemitério abarrotado de gente. Mesmo com toda dificuldade em transitar naquela confusão, no fundo eles estavam se divertindo muito, os cemitérios se tornam um ambiente bem vivo nessa época do ano. Sem qualquer indicação, eles sabiam como chegar ao lugar certo. Quando se aproximaram, notaram que quase todos estavam lá.

O seu Isidoro ficou animado em vê-los depois de tanto tempo. Dona Salete ficou impressionada como todos estavam mudados, parece até que o tempo voa. Só o pequeno Basílio que estava indiferente, pois tinha ido para tantos Dias de Finados que nem se surpreendia mais. Vendo a família em silêncio ao redor do espaço dos Souza Passos, os três conversavam discretamente.

— É impressão minha ou a Lucia está mais cheinha dessa vez? – disparou dona Salete.

— O quê?

— Engordando, você sabe, ela está ficando cada vez maior.

— Pelo amor de Deus... – Isidoro reprovou o tom fuxiqueiro da conversa.

— Calma, só estou comentando.

— Numa dessas ela tá grávida – Basílio embarcou na especulação.

— De novo?

— Se isso for verdade, você ganha mais um sobrinho, Basílio.

— Legal!

— Legal é? E a conta bancária do seu irmão, onde é que fica?

— Dona Salete, dona Salete, sempre procurando o lado trágico das coisas...

— Isso porque não é com você. Mas também ninguém mandou o Antônio ficar aí, fazendo filho ao atacado.

— Esse meu irmão caçula não tem jeito mesmo...

As orações pareciam ter cessado no túmulo dos Souza Passos, aos poucos os familiares se preparavam para ir embora. Com cumprimentos sutis, a parentada se despediu e abandonou o cemitério movimentado. Os três ainda permaneceram lá um tempo, curtindo as flores novas.

— Cada ano parece que ficam menos tempo – disse Salete desgostosa.

— Pelo menos vieram.

— Você tá feliz porque sempre é o mais festejado, olha só quantas flores você ganhou, Basílio?

Seu Isidoro estava certo, o túmulo de Basílio era sempre o mais homenageado. Eram tantas flores que até tampavam a foto do menino que foi atropelado quando corria atrás da bola de futebol. Dona Salete também tinha razão de estar chateada, suas irmãs não vieram visitá-la novamente. Qualquer hora vai descobrir que elas morreram há algumas décadas. Três para ser mais exato.

— Estão vendo aqui? – dizia seu Isidoro mostrando a foto colada na lápide. – Esse sou eu alguns anos mais moço vestindo esse paletó. Não sei se já contei, mas ele foi um presente da tia Etelvina, que comprou na sua viagem pela Sicília.

— Sicília?

— Sicília.



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