o salamandra

terça-feira, outubro 26, 2004


Bandeiras contra o desemprego

As eleições já estão chegando e em breve todo aquele burburinho eleitoral vai acabar com o barulhinho da urna eletrônica. Será um alívio danado. Depois disso, tchau e benção, não quero ouvir falar de política tão cedo. Eleição, então, nem a de síndico do meu prédio.

Tudo bem, sei que não sou nenhum cidadão exemplar no que diz respeito a eleição, mas é que esse ano as coisas parecem mais pegajosas do que o habitual. Ainda bem que nem todo mundo pensa como eu. O seu Arlindo, por exemplo, ele está chateado com o término do período eleitoral e tem um bom motivo para isso. Para que você entenda melhor, vou começar do início.

Mais uma vez as páginas dos classificados não traziam nenhuma boa notícia, tudo porque Arlindo não tinha muito estudo, experiência também não, pistolão idem. A salvação da lavoura foi a eleição, que recrutou milhares de pessoas esse ano. Como Arlindo não era lá um sujeito muito articulado, o encaixaram num serviço mais braçal. Braçal e braçal mesmo, era ele quem agitava a bandeira com o nome e número do candidato.

Embora tenha achado um pouco complicado no início, aos poucos foi pegando o jeito da coisa. Não demorou muito começou a chamar atenção pela maneira enérgica que tremulava a bandeira. Enquanto os outros precisavam de um vento forte para esticar a legenda do candidato, seu Arlindo reinava absoluto nas esquinas e cruzamentos do centro da cidade.

O 1o turno veio e para a infelicidade de Arlindo, seu candidato levou bomba: não fez muitos votos e nem ficou pro 2o turno. “Será que foi culpa minha?”, chegou a pensar. Por sorte, quando foi ao comitê acertar as contas, ficou sabendo da boa notícia. Um dos seus colegas já tinha acertado trabalhar para o outro candidato e precisava de alguém para cuidar da bandeira. Esse alguém era Arlindo.

Naquele dia, ele voltou todo feliz pra casa. Quando chegou foi outra surpresa, um sujeito engravatado estava convidando para trabalhar na campanha do outro candidato. Na empolgação ele aceitou mesmo sem saber como faria isso.

No final das contas, tudo se acertou. De manhã ele tremulava a bandeira azul de um candidato, de tarde a amarela do outro. Era tudo que ele tinha pedido a Deus, não desagradar nenhum dos lados e ainda ganhar para isso. Poxa, desse jeito ele nem se incomodaria de passar o resto da vida fazendo isso.

— Não seja bobo, Arlindo! – alertou sua esposa. – No final das eleições eles vão te chutar pra fora!

Ela tem razão – ele pensou –, quando acabarem as eleições vão acabar as bandeiras. Não demorou muito Arlindo se lembrou do caderno de classificados repleto de anúncios, mas nenhum para “tremulador de bandeira”. Precisava descobrir uma maneira de sobreviver depois das eleições.

Arlindo matutou o dia inteiro. As pessoas que o conheciam sabiam que algo estava errado pela maneira que estava balançando a bandeira. Por fim chegou à resposta e, de tão feliz, pediu para ter uma palavrinha com o senhor candidato.

— O plano vai salvar não só o meu emprego, mas o de todos agitadores de bandeira da cidade!

O candidato prestava muita atenção, Arlindo começou a explicar:

— Basta tirar todas as placas de trânsito da cidade. As placas, você sabe, eles só existem para atrapalhar as pessoas, sem falar que quando a gente está distraído...

— Sim, sim. Tirar as placas, e daí?

— Tirar as placas e substituir por pessoas agitando bandeiras.

— Como é? – o candidato tentou entender.

— A prefeitura tiraria a placa de trânsito e no lugar colocava uma pessoa agitando uma bandeira de “proibido estacionar”, por exemplo.

— hum?

— Ou então na estrada uma pessoa agitando uma bandeira escrito “cuidado queda de barreiras”.
Por fim, o candidato agradeceu a preocupação do seu Arlindo e disse que sua sugestão será encaminhada à futura Secretaria de Qualquer Coisa. Depois de um aperto de mão com direito a foto e um adesivo para pôr no carro (que não tinha), Arlindo voltou para casa intrigado. Queria saber como ele levaria sua sugestão se não havia sequer anotado. Não sei, algo me diz que ele não deu a menor bandeira.


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terça-feira, outubro 19, 2004


Vingança mal direcionada

— E aí, gordo burro!! Gordo burro!!

Imediatamente o sangue lhe subiu no rosto. Ele não pôde acreditar estar ouvindo aquela ofensa novamente. Suas mãos não seguraram a ira e ele amassou o jornal sem perceber. Virou-se para trás e só deu tempo de ver a moto saindo dando duas buzinadinhas de deboche.

— Maldito filho da... – resmungou baixinho.

Uma perseguição, só podia ser uma coisa desse tipo, coisa de filme de terror. Se estavam tentando deixar o Bernardo louco, finalmente estavam conseguindo.

Mas calma lá, sei que está parecendo estranho, mas deixe contar a história desde o início. Esse caso tem raízes profundas e só é possível entender se pudermos rebobinar a fita quase vinte anos atrás, quando Bernardo era apenas um garotinho como qualquer outro.

Ele tinha por volta dos seus 13 anos, na época em que começou a matar aula para ficar zanzando pela rua. Outra mania que tinha era economizar a passagem de ônibus para poder se encher de doces. Depois de matar tanta aula e comer tantas porcarias, ele acabou se tornando uma figura roliça e mal de notas. Foi a partir daí que começou tudo.

— E aí, gordo burro!! – escutou quando estava na banca de revista lendo gibi.

Quando ouviu, ele estranhou. “De quem devem estar falando?”, chegou a pensar. Mas não havia dúvidas, estava claro que o grito tinha sido direcionado para dentro da banca, onde só havia ele. O tal “gordo burro” que estava falando era na verdade Bernardo.

No dia seguinte foi a mesma coisa. Quando foi para a banca e lia um gibi, teve a leitura interrompida pelo mesmo grito estrondoso:

— E aí, gordo burro!!

Aquilo era pra ele. E quem poderia ter sido? O mesmo patife de ontem, pensou. Bernardo estava visivelmente transtornado, aquela provocação estava começando a irritar. E só estava começando, porque na verdade aquilo se repetiria no dia seguinte, no outro dia, depois e depois... Bernardo não agüentava mais ouvir aquilo, só não conseguia descobrir o que irritava mais, se era ser chamado de gordo ou de burro. Detestava as duas coisas principalmente porque ambas tinha uma pontinha de verdade.

Um dia, porém, ele resolveu dar um basta. Decidiu que não iria mais ser chamado de gordo ou de burro. Ele devia ter lá seus 21 anos quando decidiu encarar de frente o problema. Resolveu que finalmente iria tocar os estudos pra frente para ser respeitado, fez um supletivo e rapidinho recuperou os anos perdidos. Ainda assim, quando arrumava um tempinho extra, ia sempre fazer uma visita à banca de revista, mesmo assim sempre que chegava era recebido com a mesma homenagem:

— E aí, gordo burro!!

Sim, mesmo depois de tanto tempo, o cretino metido a engraçadinho continuava com as provocações. Mesmo assim Bernardo não desanimava, muito pelo contrário, essas coisas só lhe davam mais força para seguir em frente.

Se o estudo ele já estava recuperando, ainda faltava se livrar da fama de gordo. Começou então um plano ambicioso, que era alcançar o seu peso ideal. Isso sim daria muito trabalho. Após muitos meses de dieta, ele finalmente deu-se por satisfeito, conseguiu perder quase duas arrobas. Isso alguns meses antes de passar no vestibular.

Não precisa dizer que ele se formou e virou um advogado de sucesso, mas nada disso importou quando ele ouviu aquela maldita voz o chamando de gordo e burro mais uma vez. Ele precisava acabar com aquela assombração que o perseguia há tanto tempo. Mas agora Bernardo tinha um plano, um plano para acabar com o palhaço das grosserias.

Ainda de madrugada, ele retirou a tampa do bueiro para derrubar o motoqueiro maluco. Para reforçar, Bernardo cobriu o chão com cacos de vidro para aumentar os ferimentos. Por fim, encheu o caminho de tábuas e madeiras com pregos enferrujados na ponta para deixar o serviço completo. Dentro da banca ele ficou folheando uma revista a espera de tudo.

— E aí, gordo burro! – foi o grito que antecedeu um baita acidente.

Prontamente, Bernardo saiu da banca com a expressão de vitorioso. Quando chegou lá encontrou um senhor todo arrebentado, com prego e vidro por todo lugar.

— Gordo burro, me ajude aqui...

Bernardo ainda estranhou, pois nunca tinha visto esse sujeito. Enquanto pensava em atender, seu Adão, o dono da banca de revista, foi correndo acudir o moço.

— Antônio, que foi isso, meu filho?!

— Não sei, pai. O bueiro estava destampado e cai nesses pregos... e cacos...

— Vou pegar o metiolate!

— Metiolate o caramba! Chame a ambulância!

— Tem razão, tem razão!

O seu Adão voou com seu para dentro para o telefone, o filho ainda estava lá no meio fio todo estrupiado.

— Metiolate... só podia ser idéia do gordo burro...



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terça-feira, outubro 12, 2004


Aparelho que só confundem

Quando olhei para a Bia naquela festa quase não reconheci. É incrível a diferença que faz um simples aparelho nos dentes. Ela colocou aparelho e parece ter ficado totalmente diferente. Tudo bem que as plaquinhas de metal estão apenas nos dentes, mas alguma coisa além disso parece ter mudado. Pena que nesse caso a mudança não foi pra melhor.

— Pois é, eu gostava mais de como era antes... – cheguei puxando assunto com o Marcelo.

— hein?

— O sorriso dela – apontei discretamente. – Eu gostava mais como era antes. Antes do aparelho.

— humm... você diz isso por causa do metal...

— Não, é que eu gostava do jeito dos dentes dela antes.

— Quer dizer, tortos?

— Não eram tão tortos assim. Só não eram perfeitos.

— Eram encavalados, parecia engavetamento na BR – exagerou Marcelo.

— Tudo bem, que seja. De qualquer forma eu preferia antes do que com esse metal todo na boca.

Mas o que adianta? O negócio é me acostumar com o sorriso prateado para que, quem sabe daqui uns anos, vê-la com os dentes perfeitos, igual comercial da Colgate. Aquele sorrisinho engraçado da Bia nunca mais.

— Não sei se você reparou – retomei o papo. – Mas não foram só os dentes dela que mudaram.

— Como é?

— Sei que não faz sentido, mas desde que colocou aparelho notei que algumas coisas estão diferentes.

— Além dos dentes?

— Sim, além dos dentes, a começar pela postura. De uns tempos pra cá a postura dela está diferente.

— Postura? Eu não notei nada...

— Ela está andando diferente. Já ouvi falar em aparelhos que mudam a boca da pessoa, mas que mudam as costas é a primeira vez.

— Como assim? – perguntou sem entender nada.

— Eles devem ter mexido na coluna vertebral ou coisa assim... Deve ter sido para corrigir a mastigação.

— Cara, eu acho que não tem nada a ver...

— Tudo bem, mas essa não foi a única mudança. Até o cabelo dela mudou de cor. Antes era castanho e agora está loiro.

— Era castanho? Quando eu conheci já era loiro.

— Poxa, então você deve conhecê-la há bem pouco tempo...

— Pouco tempo? Na verdade desde o colegial!

— Então você não deve ser muito bom em notar essas coisas...

O Marcelo sempre foi um cara meio distraído. Distraído para não falar burrinho, daqueles que demoram para cair a ficha. Mas sabe como é, amigo a gente sempre perdoa. Quando encontra na rua cumprimenta e dá uns tapinhas nas costas. Às vezes aproveita e cola um cartaz nas costas “Eu sou, mas quem não é?”, mesmo assim continua sendo amigo.

— Mas sabe, a maior mudança vai além do cabelo e da postura.

— Qual é?

— Comecei a reparar agora no jeito dela. Ela está completamente mudada.

— Mudada?

— Sim, mudada. Ela que sempre foi mais quieta e discreta, agora está toda falante, dando atenção para todo mundo...

— É...

— E sem falar que está dando bola pra tudo quanto é homem.

— Como é?? – ficou indignado.

— É sério, ela está atirando pra todo lado. Quem chegar primeiro leva.

— Olha aqui, cara – começou a arregaçar as mangas. – Veja lá como fala da minha namorada!

— Namorada? Você está namorando a Bia?

— Que Bia, o quê? Ela se chama Roberta!

— Roberta?

Ainda levei alguns instantes para entender, só então percebi porque a Bia estava tão diferente. Simplesmente porque não era a Bia.

— Marcelo, esqueça o que eu disse, tinha confundido... Marcelo?

— Me chamo Agnaldo – respondeu com punho serrado.



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terça-feira, outubro 05, 2004


Por isso prefiro os dublados

Caía uma chuva daquelas, um temporal doido. Ele estava tão desesperado que saiu do carro sem guarda-chuva ou qualquer proteção. Ficou encharcado, é claro, antes de dobrar a esquina já estava todo molhado. Nessa hora dei graças a Deus por estar seco.

— Onde estão eles? – perguntou ainda esbaforido.

— Lá em cima – respondeu apontando.

Rapidamente ele se dirigiu até a escada de metal. Segurando no corrimão, dava passos largos subindo os degraus. O barulho dos passos ecoava por todo prédio, os outros moradores foram logo abrindo espaço para ele passar. Engraçado, no meu prédio nunca fariam uma gentileza dessa.

— Vamos, por... – ordenou o bandido na cobertura.

Ela ainda tentou gritar, mas ele estava tapando a boca da mocinha. Ele a tinha tomado de refém, uma atitude comum quando a bandidagem vai tentar escapar. Mas de tantas meninas dando sopa por aí, por que é que foi logo pegar ela? Se ela fosse qualquer uma ele até teria chance, mas ele pegou logo Susan, a namoradinha de Winston.

Depois de mais uns degraus, o herói finalmente chegou à cobertura. Foi lá que o agente Charles explicou a situação:

— Hanson escapou e fez uma refém. Ele quer a presença...

— Do governador? Fora de questão! – disse Winston.

— Eu sei que é, mas ele diz que só solta a refém se o governador vir a público e falar a...

Winston apenas balançou a cabeça enquanto carregava a pistola e empunhou com as duas mãos. Nós nos aliviamos, quando ele faz essa cara a gente sabe que vai dar tudo certo.

— Winston! – grita a namorada quando viu o rapaz.

Imediatamente ele reconheceu aquela voz. Não podia ser outra pessoa além de Susan, a menina que há muito tempo estava tirando o sossego do mocinho. A partir daquele momento ele começou a ficar nervoso. De nervoso que fiquei, parei até de comer a pipoca.

— Hanson, eu não estou armado. Estou querendo bater um... – disse Winston jogando a pistola no chão.

— Saia daqui, nenhum tira vai me impedir. Eu só irei daqui quando o governador Taylor vir a público e contar...

A tensão aumenta e ele está visivelmente nervoso.

— Winston! – conseguiu gritar Susan com os olhos chorosos.

— Espere, Hanson, mantenha a calma. Estou aqui querendo te ajudar – disse levantando os braços.

Por mais boba que pareça, a frasezinha parece ter surtido efeito. Hanson ficou mais aberto a negociações. Será que os policiais daqui do Brasil falam uma coisa dessas?

— O governador, ele sabe toda verdade, ele viu que eu não...

— A verdade virá à tona, Hanson. Os verdadeiros culpados... – disse Winston se aproximando lentamente.

— Eu nunca teria cometido o sacrilégio de fazer mal àquela...

— Me dê a arma, Hanson – pediu Winston esticando o braço em direção ao criminoso.

— Eu sempre gostei daquelas criaturinhas peludas. Quando era pequeno não podia...

— Me dê... – pediu num tom mais áspero.

— Não fui eu, não fui eu quem matou...

— A arma, Hanson!!

— Winston! – gritou a refém enquanto a música de suspense aumentava.

— Quem matou na verdade foi...

— O que você disse?!

— Estou tentando dizer que quem matou na verdade foi...

Imediatamente Winston caiu de joelhos no chão. Ele não podia acreditar que esse tempo todo o culpado tinha sido outra pessoa, alguém que ele jamais desconfiaria. Pouco depois disso o filme acabou e as pessoas saíram do cinema soltando elogios mil.

— E aí, André, o que achou?

— Bom, bom filme...

Respondi lentamente enquanto pensava em alguma resposta melhor. Por fim, resolvi abrir o jogo:

— O filme foi bom. O único problema foram as legendas, que trocavam tão rápido que às vezes nem dava tempo de eu ler as frases completas.

— O quê? Você não conseguia ler os diálogos inteiros? Você então não...


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