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terça-feira, setembro 28, 2004
Posted
10:23 AM
by André Melo
História de circo
Eles se conheceram no circo, isso já faz um tempo. Ele fazia parte do “Grand Circo Veneza, a maior atração do velho continente”. A trupe existia há muitas décadas, criado pela tradicional família Gianini, que não vinha da Itália, mas sim de Uberlândia. Marlene era uma simples estudante do “Colégio Michigan, educação de primeiro mundo”, no município de Astorga. Eles se conheceram quando o circo veio passar uma temporada na cidade. Os cartazes falavam em apenas 5 dias, que por fim se estendeu por 2 meses. Num desses dias ela foi até lá para acompanhar os irmãos pequenos. Pelo menos foi esse o pretexto, pois quem queria ir era ela mesmo.
— Respeitável público! – exclamou um sujeito de fraque e cartola, pelo jeito o mestre de cerimônia.
Ele enumerou todas as atrações que poderiam ser vistas naquela noite. Fez isso usando sempre adjetivos lisonjeiros e engrandecedores, mais ou menos do jeito que o Faustão faz para apresentar as pessoas. A Marlene ficou muito impressionada.
— Samantha, a fantástica mulher elástica! Leon, o destemido atirador de facas! Francis, o surpreendente mágico de cobras! Os irmãos Rodriguez, os intrépidos do globo da morte!
Essas eram as maiores atrações do circo, é claro que haviam outras. Dentro do que podemos chamar de outras estava “Juan, o maior malabarista das três Américas!”. Obviamente ele não era tudo isso, mesmo assim conseguia muitos aplausos quando usava malabares em chamas. Seria ele que arrancaria suspiros de Marlene naquela noite.
Logo que Juan entrou no palco ela logo notou o homem. Além da pose imponente e do queixo protuberante, um bigodinho fino compunha o perfil do amante latino que Marlene sempre sonhara. Ela adorou o show de malabarismo, embora nem tivesse prestado muita atenção nos malabares. De tão impressionada que ficou, retornou dia após dia só para ver Juan, o maior malabarista das três Américas.
Depois de um tempo, ela não suportou ficar apenas admirando o artista, tinha que conhecê-lo de qualquer maneira. Sabendo de uma cunhada entendida dos castelhanos da vida, Marlene tomou umas lições e aprendeu mais ou menos um portunhol meia boca. Agora ela poderia finalmente conhecer o malabarista Juan.
Com as frasezinhas decoradas, Marlene o procurou em um dos traillers do circo que sabia ser o dele. Quando atenderam a porta, ela tratou de vomitar aquele portunhol bizarro.
— Me gustaria mujo conecer el malabarista Juan!
É claro que ele não entendeu patavina do que se passava, o espetáculo não havia começava e ele não era “Juan, o maior malabarista das três Américas”, e sim “João da Prata, o malabarista do triângulo mineiro”.
Ela ficou um tanto decepcionada de saber que Juan era João, mesmo assim aceitou entrar e tomar um cafezinho com ele. Papo vai, papo vem, papo vai, vem, devem ter conversado a tarde inteirinha, parecia que se conheciam há muito tempo. Sem falar que os dois tinham tanta coisa em comum, não dava pra negar. Os dois tinham nascido de cesariana, por exemplo. Isso sem falar que ambos foram mordidos por cachorro quando eram pequenos. Sei que essas coisas não têm nada de extraordinário, mas quando se está apaixonado parece algo traçado por Deus.
Um dia, João foi a procurar em casa, precisava falar com ela imediatamente. Naquela noite o circo sairia da cidade às pressas, dariam o calote não pagando o aluguel do terreno onde estavam. João foi lá para se despedir e quando deu por si Marlene já estava de malas prontas.
O circo saiu de Astorga e aterrissou em cidade. João agora tinha uma companhia no trailler e Juan ganhou uma ajudante de palco. Estavam muito bem até que o Grand Circo Veneza quebrou. A trupe agora estava desfeita. Todos os artistas tiveram que arranjar outros trabalhos para sobreviver, algumas vezes até tendo que largar os espetáculos. Juan, pelo menos, continuou a existir. Tudo bem que não era a casa de espetáculos que havia sonhado, de qualquer forma tinha a vantagem de ser ao ar livre. Era só o semáforo fechar que ele começava seu número. Marlene continuava sendo sua ajudante, passando a sacolinha entre os carros. Felizes? Claro que sim, menos quando chovia. Esse tempinho de Curitiba é um saco!
Só antes que me esqueça: Samantha está se desdobrando tentando empurrar revista no telemarketing. Leon atira facas no açougue Guanabara. Francis virou ator pornô. Os irmãos Rodrigues continuam intrépidos, dessa vez como motoboys.
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terça-feira, setembro 21, 2004
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11:22 AM
by André Melo
Sobre buquês e paixões
Revoltante, revoltante, êta troço revoltante! Por favor, desculpem o meu estado de nervos, minha revolta, mas às vezes fica difícil manter o controle. Se ao menos eu achasse onde diabos fui pôr o maço de cigarros. Por que é que a gente nunca encontra quando mais precisa?
Deixe para lá, eu também não fumo mesmo, quem estou tentando enganar? Além do mais, agora que a coisa toda está feita não adianta chorar nem espernear, tenho mais que encarar de frente. Afinal de contas, não é qualquer probleminha que vai me tirar do sério, certo?
— Bom dia, o senhor teria um minutinho para responder uma pesquisa que estamos fazendo?
— Cai fora daqui! – esbravejo para o moço da financeira que me interrompe no calçadão da XV.
Não quero que pensem que sou um desequilibrado ou coisa do gênero, mas esse tipo de problema costuma me tirar do sério. Mulheres, claro, é das mulheres que estou falando. Elas sempre arrumam um jeito de tirar o sossego e tranqüilidade da gente. Maldita hora que Deus criou as mulheres, as coisas só deram errado desde então. Por que em vez das mulheres Ele simplesmente não criou a boneca inflável?
Logo reconheçi o lugar pela grande variedade de plantas e coisas verdes. Estou vendo que vai ser uma longa procura até achar o mais adequado para ela. Em pouco tempo me perco em meio à imensidão verde, isso sem falar nos odores diferenciados. Nunca pensei seria tão difícil comprar flores.
Sabe, durante esse punhado de anos de existência sempre tive uma característica no que diz respeito a relacionamentos afetivos. Eu sempre me interessei somente pelas mulheres erradas, as chamadas popularmente de “chaves de cadeia”.
Não que fosse algum tipo de fantasia com as mulheres do sistema carcerário, é que, sabe-se lá o porquê, invariavelmente eu sempre acabava me apaixonando pelas mulheres erradas. Errada que eu digo são aquelas que não tinham muito em comum comigo, interesses diferentes, perspectivas diferentes e outras coisas diferentes. Com tantas diferenças não fica difícil entender que o final era sempre o mesmo: eu me estrepava.
Flores, flores, flores. Nunca pensei que existisse uma variedade tão grande assim. Eu que sempre achei que só existiam dois tipos de flor: as rosas vermelhas e as rosas brancas. As vermelhas você dá para a amada, as brancas você dá para outra pessoa que não a amada. Para a sogra você pode dar qualquer uma, a cor não influi, o importante é mandar um buquê bem grande e vistoso para que esconda a bomba relógio que se arma ao fundo.
Lembro que era um negócio muito maluco gostar da pessoa mesmo sabendo que ela não tinha muito em comum comigo. Gerava um conflito danado entre o lado racional e o emocional. Racionalmente, uma voz ficava sussurrando ao fundo “Isso não vai dar certo, isso não vai dar certo”. O lado emocional, por outro lado, enxergava tudo em cor de rosa, “Olha só, ela não é uma graçinha?”. Até hoje ainda é um enigma entender a pane que deixava o racional e o emocional em parafuso. Essa questão acho que nunca será respondida, mas algo me diz que a cintura fina e o quadril largo devem ter culpa nessa história.
— Vou ficar só com isso aqui – disse ao moço da floricultura. – O senhor poderia preparar um buquê?
Naquela época, eu sempre me apaixonava pela pessoa errada e tinha consciência disso. Obviamente, eu achava que aquilo era a pior coisa que poderia acontecer a uma pessoa.
— Com disse? – perguntou o rapaz intrigado.
— Um buquê, poderia fazer um buquê?
Mas a vida sempre arranja um jeito de piorar as coisas. Quando você acha que não tem como piorar, sempre bolam alguma forma de aumentar o nosso sofrimento.
— Você quer que eu faça um buquê? E com isso?
— Isso aqui não é uma flor? – perdi a paciência. – Pensei que vocês faziam buquê de flores numa floricultura!
Mal sabia eu que muito pior do que se apaixonar pela pessoa errada é se apaixonar pela pessoa certa.
— Floricultura? Claro que não, isso aqui é uma quitanda! E isso aqui que o senhor tá levando é uma flor sim, mas uma couve-flor! O senhor vai querer um buquê de couve-flor? – falou em tom gozador.
Só então me dei conta do engano, aquilo ali realmente era uma quitanda. Não sei como não percebi antes. Bem que estava achando as flores daqui meio feias, outras pesadonas demais. Para não ficar chato, acabei levando a couve-flor. Apesar de tudo, ainda acho que daria um belo buquê, talvez em forma de salada, no centro da mesa...
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terça-feira, setembro 14, 2004
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6:56 AM
by André Melo
Trocando os pés pelas mãos
A tranqüilidade da manhã é interrompida pela exclamação do despertador. Sete e meia, como de praxe, eu me levanto. Pelo menos essa é a intenção, pois pego no batente pontualmente às 8h. Não tão pontualmente pelo menos hoje. Antes que os lençóis me puxem novamente pra cama, me atiro para dentro do chuveiro.
Normalmente é só nessa hora que recobro os pensamentos, antes disso minha mente só tem lugar para os sonhos. Engraçado falar nisso, noite passada eu tive um sonho bem maluco. Pena que não me recordo de nada, só posso dizer que acordei com a sensação estranha de que tive um sonho sem pé nem cabeça.
Saio do chuveiro intrigado, alguma coisa não está certa. Me enrolo na toalha e vou para o quarto. A sensação estranha deve ser por causa de alguma coisa que vi na TV, me lembro de ter dormido na frente do aparelho ontem à noite. Só não me recordo do que estava assistindo, mais um indício de que estava dormindo. Bom, agora não importa, bola pra frente e paciência.
Terminando de me enxugar, resolvo dar uma atençãozinha para os pés. Agora não adianta correr que já estou atrasado no horário. Com a toalha entre os vãos dos dedos, começo a notar algo estranho. Espere aí, os meus dedos não são assim, alongados e finos. Será que não ando me alimentando bem e até os dedos emagreceram? Não pode ser isso, não eram só os dedos que estavam diferentes, o pé todo está mudado!
Melhor analisar com atenção. Sentei-me na cama e comecei a apalpar com cuidado os pés. Embora não tivessem qualquer lesão ou machucado, notei uma certa diferença. Eles pareciam menores e com os dedos alongados. Preocupado que estava, fui até a escrivaninha e peguei uma lente de aumento. Sendo assim, tratei de fazer uma varredura para ver o que se passava com o pé.
Após alguns instantes, finalmente conclui que aquilo não era um pé e sim uma mão! Não sei explicar como, mas de alguma forma os meus pés tinham se transformado em mãos. E mãos perfeitas, com polegar, indicador, dedo médio e etc. Imediatamente veio à minha cabeça a imagem dos pés dos macacos, que parecem mãos. Eles parecem que não tem pés, em compensação têm quatro mãos, que nem eu.
Mas espere um pouco, isso não faz o menor sentido. Nunca ouvi falar em pés virarem mãos, deve ser só uma impressão. Aposto que se for comparar uma coisa com outra vou perceber que são diferentes. Sendo assim, coloquei frente a frente os pés com as mãos para tirar essa história a limpo.
Num primeiro instante fui tomado por um grande alívio, pés e mãos eram duas coisas diferentes. Porém, pouco depois me caiu a ficha e a realidade se mostrou muito mais terrível. Os meus pés tinham realmente se transformado em mãos, como acontece nos chimpanzés. E a outra coisa ainda foi pior, as minhas mãos normais tinham virado pés!
Fui tomado por um desespero completo, sempre fui uma pessoa normal e um dia acordo transformado em uma criatura bizarra. Em vez das mãos, sou uma aberração que possui pés na ponta dos braços. Nas pernas, em vez de pés dando a sustentação, aparecem duas mãos. No que eu fui me transformar, meu Deus!?
Aquilo não podia ficar assim, tinha que ter uma explicação. Um médico! Tem que haver um médico nessa cidade que me deixe ao normal. Era só transplantar o pé no lugar da mão e a mão no lugar do pé. Ia sair caro, mas tinha que ser assim. Me deixando normal eu dou um jeito de descolar a grana.
Rapidamente me vesti para sair de casa. Percebi a dificuldade que era calçar os sapatos nas mãos, o que tornava andar muito mais difícil. Outro problema era sair com as mãos transformados em pés. Luvas eu sei que não entrariam, teria que usar meias para tentar camuflar as mãos transformadas em pés.
Com muito custo consegui terminar de me aprontar. Apesar da dificuldade que tinha em andar, eu iria atrás de um médico que pudesse desfazer essa loucura. Sem paciência de arrumar o cabelo, enfiei um chapéu na cabeça para sair de casa. Por força do hábito, fui até o espelho do banheiro e quase caí pra trás tamanha surpresa. No lugar na cabeça, a única coisa que se via era uma bunda!
Mãos no lugar dos pés e pés transformados em mãos até dá para suportar, mas no lugar da cabeça existir um par de nádegas era demais. Como eu poderia sair de casa com uma bunda em vez da cabeça?
— Poxa, André, que disposição! – disse minha mãe quando me viu sair do banheiro. – Mal acordou e já está aí, plantando bananeira.
“Plantando bananeira?”, pensei comigo mesmo antes de enfim entender o que se passava. Eu não tinha me transformado em uma criatura bizarra, com pés no lugar das mãos, mãos em vez dos pés e um traseiro no topo do pescoço, estava só todo esse tempo plantando bananeira. Acordei de manhã e sei lá porque cargas d’água achei que esse era o normal. Eu sabia que alguma coisa estava errada, só não imaginava isso. Tudo que posso dizer é que às vezes a gente troca os pés pelas mãos...
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terça-feira, setembro 07, 2004
Posted
11:54 AM
by André Melo
Embalos do feriado
Feriado de 7 de setembro em Curitiba a história se repete: silêncio absoluto, lojas fechadas, calçadas vazias, a tranqüilidade paira no ar, ruas desertas sem aquele trânsito infernal, em resumo, um saco.
A cidade fica jogada às moscas, quem foi mais esperta já se mandou para o litoral. Para os que aqui ficam, os passatempos variam entre comer e dormir, dormir e comer, comer e comer, dormir e dormir. Apesar das múltiplas opções, todas pessoas que ficam em Curitiba têm uma coisa em comum: todas torcem, rezam e fazem figas para que nuvens carregadas se instalem e causando chuvas, tempestades e cataclismas. Não aqui, os fenômenos meteorológicos têm que ocorrer no litoral. Só nos vemos satisfeitos quando o noticiário mostra a tempestade em meio ao caos urbano.
Nesse momento estava esfregando as mãos com um sorriso maquiavélico quando a campainha soou repetidamente.
— Já vou, já vou!
Mesmo assim o barulho persistia, o que provava o autor da visita.
— Clédisson Craveira – disse ao abrir a porta. – Quer dizer então que não sou o único na cidade?
— Único na cidade?
— Ué? Pensei que você tivesse ido pra praia, como todos os outros.
— “Pensei que tivesse ido para praia” – repetiu de forma irônica. – Faça-me o favor, e perder um evento como esse?
— Evento?
— Não dá tempo de explicar agora, vista-se que lhe conto no caminho.
— Espere aí, Clédisson, você está dizendo que vai ter alguma coisa aqui em Curitiba, em pleno feriado?
— Sim, claro, só você não está sabendo. Na rua só se fala nisso, ouvi dizer que está bombando!
— Poxa, Clédisson, se você tivesse me avisado antes, teria tomado um banho, feito a barba...
— Que nada, não precisa de nada disso. Ponha uma roupa qualquer, vai desarrumado que assim fica legal.
— Ir desarrumado? Que lugar é esse? Já sei, é daqueles meio alternativos, com as pessoas desarrumadas para parecer casual...
— É quase isso...
— Sei como é, todo mundo casual, meio largadão. Aquelas meninas que ficam duas horas se produzindo para parecer que só passaram uma água no rosto antes de sair.
— Praticamente isso. Agora vamos logo porque estamos atrasados!
Ainda tentei ajeitar o cabelo no espelho da portaria, mas logo o Clédisson Craveira me puxou para dentro do carro.
— Acho que antes das 4h a gente chega lá – conferiu num despertador velho dentro do porta-luva.
Só então me dei conta do estado do carro, com sujeira espalhada por todo lado. O modelo Passat 86 não colaborava, mas o que mais chamava atenção eram as coisas espalhadas lá dentro, desde resto de comida a peças de roupa.
— Mas isso aqui está um chiqueiro! – disse segurando um pacote de salgadinho Mandiopã pela metade.
— Não repare não – respondeu tirando um punhado de salgadinho. – Isso faz parte do figurino.
— Figurino? Pombas, isso que é querer parecer casual!
— As outras pessoas vão ver a gente chegando de carro e tem que acreditar – tentou se explicar.
Rapidamente ele estacionou o Passat em meio a uma confusão no centro da cidade. Desci atrás do Clédisson e seguimos até um carro de som. Ele cochichou qualquer coisa para o segurança e subimos.
— Companheiros, vistam isso – disse um homem nos distribuindo bonés vermelhos.
Só então me dei conta de que não estava em nenhuma festa ou algo do gênero, era sim o “Grito dos Excluídos”, manifestação nada festiva que acontece todo 7 de setembro.
— Companheiro, você acha que vai bombar? – o Clédisson perguntou para o senhor ao lado.
— Acho que não. A polícia ainda não apareceu.
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