o salamandra

terça-feira, agosto 31, 2004


Coisas estranhas no corredor do prédio

Uma madrugada calma, silenciosa, sem qualquer barulho na rua. O dia, ou melhor, a noite também colaborava, nada de chuva ou vento, sequer uma brisa sussurrando na janela. Era uma noite tranqüila, tranqüila até demais. Não tinha nada interessante acontecendo, nada para escrever, nenhuma idéia na cabeça. É nessas horas que sabemos quem são as pessoas que escrevem de verdade e quais só fingem que escreve. Algo me dizia que nessa história eu ia me dar mal...

De repente, um barulho abrupto surge, um som vindo do corredor do prédio. Para os que não sabem, eu moro num prédio, um prédio com corredor silencioso. Não precisa dizer que aquele barulho em plena madrugada não era normal, coisa boa é que não era.

Muito sorrateiramente me aproximei da porta para identificar aquele som esquisito. Apoiando a orelha na porta, tentei escutar o que se tratava, porém não cheguei a um veredicto. O som era uma espécie de rugido abafado de um animal, um lamento selvagem de criatura bizarra ou algo como o resmungo de uma mulher que se acha gorda só porque comeu uma lata de leite Moça. De qualquer maneira, com medo das três coisas em questão preferi ficar oculto atrás da porta.

O som bizarro persistia, às vezes com breves interrupções, mas ainda podia ser notado pelos ouvidos mais sensíveis e higienizados. Tentei enxergar alguma coisa através do olho-mágico, mas a escuridão predominava. Por mais mágico que seja o olho, nessas ocasiões não tem muito o que fazer. Por outro lado, o barulho começou a aumentar, parecia que a criatura estava se aproximando!

Achava incrível ninguém ter notado o som esquisito se propagando pelo corredor, o prédio permanecia adormecido. Mas espere aí, enquanto nenhuma providência parece ser tomada aquela criatura fica à solta, andando pelos corredores e emitindo sons estranhos. Alguém tem que fazer alguma coisa, alguém tem que defender o prédio, alguém tem que defender os moradores, alguém tem que defender a vizinha do 5o andar!

Calcei o sapato por cima do pijama e ajeitei os óculos. Se é de um homem que vocês precisam, agora não precisa mais.

— Que palhaçada é essa aqui no meu prédio?! – saí do apartamento botando respeito.

— GREEEEER... GREEEEER... – rosnava o animal.

Vendo que a criatura não se abalara, resolvi acender a luz do corredor para enfim ficar cara a cara com o animal funesto (atitude limitada somente aos moradores mais corajosos e valentes do prédio). Quando liguei a luz, nossos olhos se fixaram por um instante eterno. A criatura selvagem foi a primeira a tentar intimidar, rosnando de maneira feraz:

— GREEEEER GREEEEER!!!

— Saia daqui, criatura do mal! Volte para as trevas, profundezas ou seja lá de onde tenha saída! Vá antes que eu comece a me irritar de verdade!

Após o meu colóquio fatídico, a criatura prontamente se esquivou assustada, descendo até os andares inferiores onde perdi de vista. Notei apenas os olhos vermelhos e os trapos velhos que vestia, como se fosse um cidadão normal que sofreu um processo de transformação em animal selvagem. A minha presença deve por fim ter intimidado a criatura, algo inteiramente compreensível.

Mais uma vez, o sossego e tranqüilidade do prédio são restabelecidos graças aos esforços silenciosos de apenas um morador que presa pela paz dos condôminos. Só espero que um dia isso seja levado em consideração na cobrança da taxa de condomínio. Mesmo assim, voltei para casa com o sentimento de dever cumprido.

Logo que tranquei a porta, porém, o interfone tocou. Eu sabia, algo me dizia que nessa história ia me dar mal. Do outro lado da linha estava o porteiro, dizendo de uma queixa de barulho que um morador tinha feito. Somada a tantas outras, acho que vou virar tópico na próxima reunião do condomínio. Prontamente pedi para ligar para o apartamento da criatura.

— Não podia rosnar tão alto, eu não te disse? – falei irritado.

— Mas você também saiu gritando no corredor, queria que eu fizesse o quê? Você disse que tem que “encarnar o personagem”...

— Tá bom, tá bom... – fui dispensando as desculpas. – Agora estou cansado, amanhã a gente conversa.

— Tudo bem, tchau André...

— Tchau, criatura funesta.


Comments:


Coisas estranhas no corredor do prédio

Uma madrugada calma, silenciosa, sem qualquer barulho na rua. O dia, ou melhor, a noite também colaborava, nada de chuva ou vento, sequer uma brisa sussurrando na janela. Era uma noite tranqüila, tranqüila até demais. Não tinha nada interessante acontecendo, nada para escrever, nenhuma idéia na cabeça. É nessas horas que sabemos quem são as pessoas que escrevem de verdade e quais só fingem que escreve. Algo me dizia que nessa história eu ia me dar mal...

De repente, um barulho abrupto surge, um som vindo do corredor do prédio. Para os que não sabem, eu moro num prédio, um prédio com corredor silencioso. Não precisa dizer que aquele barulho em plena madrugada não era normal, coisa boa é que não era.

Muito sorrateiramente me aproximei da porta para identificar aquele som esquisito. Apoiando a orelha na porta, tentei escutar o que se tratava, porém não cheguei a um veredicto. O som era uma espécie de rugido abafado de um animal, um lamento selvagem de criatura bizarra ou algo como o resmungo de uma mulher que se acha gorda só porque comeu uma lata de leite Moça. De qualquer maneira, com medo das três coisas em questão preferi ficar oculto atrás da porta.

O som bizarro persistia, às vezes com breves interrupções, mas ainda podia ser notado pelos ouvidos mais sensíveis e higienizados. Tentei enxergar alguma coisa através do olho-mágico, mas a escuridão predominava. Por mais mágico que seja o olho, nessas ocasiões não tem muito o que fazer. Por outro lado, o barulho começou a aumentar, parecia que a criatura estava se aproximando!

Achava incrível ninguém ter notado o som esquisito se propagando pelo corredor, o prédio permanecia adormecido. Mas espere aí, enquanto nenhuma providência parece ser tomada aquela criatura fica à solta, andando pelos corredores e emitindo sons estranhos. Alguém tem que fazer alguma coisa, alguém tem que defender o prédio, alguém tem que defender os moradores, alguém tem que defender a vizinha do 5o andar!

Calcei o sapato por cima do pijama e ajeitei os óculos. Se é de um homem que vocês precisam, agora não precisa mais.

— Que palhaçada é essa aqui no meu prédio?! – saí do apartamento botando respeito.

— GREEEEER... GREEEEER... – rosnava o animal.

Vendo que a criatura não se abalara, resolvi acender a luz do corredor para enfim ficar cara a cara com o animal funesto (atitude limitada somente aos moradores mais corajosos e valentes do prédio). Quando liguei a luz, nossos olhos se fixaram por um instante eterno. A criatura selvagem foi a primeira a tentar intimidar, rosnando de maneira feraz:

— GREEEEER GREEEEER!!!

— Saia daqui, criatura do mal! Volte para as trevas, profundezas ou seja lá de onde tenha saída! Vá antes que eu comece a me irritar de verdade!

Após o meu colóquio fatídico, a criatura prontamente se esquivou assustada, descendo até os andares inferiores onde perdi de vista. Notei apenas os olhos vermelhos e os trapos velhos que vestia, como se fosse um cidadão normal que sofreu um processo de transformação em animal selvagem. A minha presença deve por fim ter intimidado a criatura, algo inteiramente compreensível.

Mais uma vez, o sossego e tranqüilidade do prédio são restabelecidos graças aos esforços silenciosos de apenas um morador que presa pela paz dos condôminos. Só espero que um dia isso seja levado em consideração na cobrança da taxa de condomínio. Mesmo assim, voltei para casa com o sentimento de dever cumprido.

Logo que tranquei a porta, porém, o interfone tocou. Eu sabia, algo me dizia que nessa história ia me dar mal. Do outro lado da linha estava o porteiro, dizendo de uma queixa de barulho que um morador tinha feito. Somada a tantas outras, acho que vou virar tópico na próxima reunião do condomínio. Prontamente pedi para ligar para o apartamento da criatura.

— Não podia rosnar tão alto, eu não te disse? – falei irritado.

— Mas você também saiu gritando no corredor, queria que eu fizesse o quê? Você disse que tem que “encarnar o personagem”...

— Tá bom, tá bom... – fui dispensando as desculpas. – Agora estou cansado, amanhã a gente conversa.

— Tudo bem, tchau André...

— Tchau, criatura funesta.



Comments:

terça-feira, agosto 24, 2004


Aporrinhação olímpica

Rapidamente fui obrigado a mudar de canal, estavam novamente falando da Daiane. Nada contra ela, que fique bem claro, mas é que de uns tempos pra cá só se fala disso na televisão. É Daiane pra cá, Daiane pra lá, nunca vi tamanha lavagem cerebral. Eu louco para ter notícias da olimpíada e é só isso que passa.

Falando nisso, olimpíada é um negócio legal, não acha? O mundo todo reunido para uma disputa saudável e pacífica. Nada de guerra ou conflito, os países todos se reúnem para celebrar a irmandade e fraternidade dos povos. Algo só comparável ao concurso de Miss Universo, só que sem o desfile de maiôs. De qualquer forma, ficar em casa até tarde assistindo os jogos é um grande programa, pelo menos de quatro em quatro anos.

Pessoalmente, eu pertenço àquele grupo de pessoas que assiste qualquer coisa referente à Olimpíada, desde os jogos decisivos e mais importantes até os esportes menos conhecidos. Para mim, tendo dois competidores de países diferentes pode ser até disputa de par ou impar que eu assisto. Se um deles for argentino, então, já saio gritando e xingando o juiz.

Dias atrás me flagrei assistindo outro daqueles esportes exóticos. A olimpíada é um troço legal também por isso, a gente tem contato com esportes que normalmente não têm espaço na televisão e nem público cativo. Ainda mais nós aqui no Brasil, que só temos contato com futebol e mais dois ou três esportes. As pessoas deviam saber que existem outras modalidades, algumas até bem excêntricos.

Era em um desses programas especiais de Atenas, eles começaram a mostrar o resumo dos jogos e dar os resultados. Foi então que dois esportes desconhecidos me chamaram atenção. Observando atentamente a finalidade do jogo e buscando entender o objetivo de tudo aquilo, tentei imaginar se alguma dessas modalidades teria alguma chance de se popularizar no Brasil. Por fim conclui que as duas modalidades nunca se difundiriam em nosso território. Por mais aberto que seja o povo brasileiro as pessoas jamais se animariam a praticar esportes tão confusos e esquisitos. A começar pelos nomes sem sentido: badmington e vôlei.

Foi só começarem a falar dos esportes femininos que a conversa desandou a falar da tal da Daiane. Que raiva, parece marcação, mesmo mudando de canal continua esse blábláblá de Daiane. Estão falando que ela estava com uma bruta dor no joelho, coitada. Mas que diabos eu tenho a ver com isso?!

Tanta coisa acontecendo no Brasil e no Mundo, coisas mais importantes. A invasão do Iraque, os conflitos na Palestina, o cara que prendeu o nariz numa torradeira, coisas sérias e urgentes que perdem espaço nos telejornais por causa do joelhinho da Daiane. Eu, por exemplo, há uns tempos atrás tive um problema série de olho de peixe no calcanhar, me pergunta se apareceu alguém da imprensa para perguntar como é que eu tava?

Mas deixa disso, vou assistir aqui as olimpíadas para esfriar a cabeça. É bom assistir enquanto há tempo, acho que os jogos só devem durar mais uma semana, os próximos em Pequim só daqui quatro anos. Quatro anos, um bocado de tempo. Tá certo que Pequim é longo, mas em quatro anos daria para chegar lá, nem precisava ter muita pressa. Dava até para montar uma excursão, “Curitiba – Pequim” de ônibus, pagando em 48X. A gente chegaria a tempo de assistir a cerimônia de abertura, com Jacques Chan carregando a tocha olímpica, posso até imaginar.

Me distraio um segundo e quando volto vejo que estão entrevistando um médico, especialista em joelho. Ele está falando do problema do joelho da Daiane, não acredito que vai começar tudo de novo... A repórter começa a falar que foi graças ao joelho bichado que a Daiane não conseguiu a medalha. Não me agüentei e saí aos berros com a TV.

— Medalha? E desde quando a Lady Di pratica algum esporte?!

O televisor não respondeu e eu continuo a minha bronca.

— Além do mais, mesmo que ela ganhasse alguma coisa seria medalha para a Grã-Bretanha! Ela é princesa da Inglaterra, sabia? Da Inglaterra!

Depois de descarregar a minha revolta, me senti melhor. Mas que droga, nem morrendo essa Lady Di dá descanso pra gente!



Comments:

terça-feira, agosto 10, 2004


Folha dupla, sabor pêssego

Sei que pode parecer besteira, uma preocupação boba, mas tenho que confessar que em determinadas ocasiões passo um bom tempo pensando nesse tipo de coisa. Também sei que esse assunto beira a mediocridade, porém, acredito que insistindo com esse questionamento talvez consiga um dia obter uma resposta, uma explicação que possa calar essa pergunta recorrente dos momentos solitários. A dúvida é a seguinte: por que será que inventaram o papel higiênico sabor pêssego?

Besteira, não é? Eu sei, mesmo assim garanto que vocês já refletiram sobre esse tema, nem que tenha sido numa rápida passada no supermercado ou não tão rápida visita ao toalete. O papel higiênico sabor pêssego deve estar entre as invenções mais inusitadas dos últimos tempos. Curiosa ou não, é indiscutível o sucesso dessa variedade alaranjada do tradicional objeto branco.

Por outro lado, a reação imediata que tive à novidade foi pensar por que foi que escolheram o pêssego? Hoje acredito que existam outros sabores, mas por que pensaram em fazer primeiro o pêssego? Diante dessa constatação, o lado patriótico falou mais alto. Pensava que num país com uma riqueza tão exuberante de frutas e sabores, a escolha do pêssego tinha sido equivocada, provavelmente influência dos papéis higiênicos yankees. Aquele tipo de coisa não podia acontecer, estava na hora de criarmos nossos próprios sabores de papéis higiênicos. Fora ALCA, fora FMI!

Sobre o sabor pêssego, é importante lembrar que as qualidades desse novo produto não vão muito além da coloração alternativa. Embora a embalagem insinue a existência de um sabor correspondente à fruta em questão, essa característica não se revela na prática. O papel higiênico sabor pêssego não possui qualquer gosto da fruta. Pelo menos eu nunca senti.

Importante ressaltar também que ingestão dessa variedade alaranjada não resulta na aquisição nutricional da fruta. Isto é, a pessoa que, por ventura, adicionar papel higiênico sabor pêssego à dieta acreditando fazer uso de uma fonte rica em vitamina A, B1, B2, C, proteínas, gorduras e cálcio não irá alcançar o resultado esperado. O pêssego é um grande estimulante digestivo, laxativo e diurético, é verdade, porém, quando ingerido em seu estado natural, não sob a forma de papel.

Sem querer desfazer o mito do papel alaranjado, não quero que pensem que sou contrário a sua utilização. Sou um confesso apreciador da fruta, quando estamos na época do pêssego prestigio comprando quilos e mais quilos. Nesta época do ano, porém, não encontramos o pêssego com fartura, o papel higiênico, por outro lado, ainda abunda (sem trocadilho) pelos supermercados da vida, o que me leva a outro questionamento: Se não estamos na época da colheita de pêssego, mas vemos muito papel sabor pêssego. Como eles podem ter feito papel higiênico sabor pêssego sem pêssego?

Apesar dessa pergunta ser igualmente boba e infantil, temo que estejam utilizando frutos velhos, de baixa qualidade ou até estragados como matéria-prima para a confecção do papel higiênico. Além dos problemas recorrentes à ingestão de frutos apodrecidos, seria algo muito revoltante se descobríssemos que estamos utilizando com um produto estragado e passado, como um pêssego mofado.

A solução para isso tudo? Detesto ficar batendo na mesma tecla, mas vou ser obrigado a repetir o que disse anteriormente, o ideal seria a substituição por elementos da flora brasileira, que são encontrados durante o ano todo.

Existem tantas frutas diferentes em nosso território, daria para fazer uma linha completa de produtos, um sabor para cada dia. Não falo das frutas tradicionais, como maçã, pêra ou laranja, me refiro aos frutos 100% brasileiros. Cajá na terça-feira, umbu na quarta, quinta-feira açaí, tamarindo na sexta. Final de semana estava liberado, pode até pêssego. Devaneio bobo, eu sei. Mas quem sabe um dia não estaremos usando papel higiênico da marca Cupuaçu? Daí, não digam que eu não avisei.



Comments:

terça-feira, agosto 03, 2004


Um porre de esperança

Nunca uma visita de Clédisson Craveira me foi tão aguardada, estava realmente feliz em encontrar o velho amigo. Ele já estava sumido há um bom tempo, segundo algumas pessoas tirando umas férias prolongadas, foragido da justiça para outras. Independente disso, eu sabia que a vinda do Clédisson me faria bem.

A bem da verdade é que não estava passando por um bom momento. Sucessivos insucessos no campo profissional e afetivo tinham abalado o meu entusiasmo. Vocês sabem como é, nos acostumamos com o sobe e desce, os altos e baixos da vida, porém, quando nos deparamos com o desce e desce, os baixos e baixos, a coisa fica complicada. Por sorte, soube que o Clédisson estava de volta à cidade e nada melhor do que contar com os amigos nessas horas.

— Manda subir – respondi ao porteiro quando anunciou a chegada do amigo.

Momentos depois, a campainha soou repetidamente, evidência da chegada do cara. Sei disso porque ele sempre teve essa mania desde quando éramos crianças, ficava azucrinando com a campainha achando que para quem está ouvindo também é engraçado.

— Clédisson Craveira, finalmente dando as caras! – disse ao abrir a porta.

— Quem está vivo sempre aparece.

— Está certo... agora, Clédisson, poderia parar com isso – me referi a campainha que ele insistia em tocar até agora.

— Eh eh eh... essa foi engraçada, né? – disse largando o botão e me cumprimentando.

Convidando-o a entrar, perguntei sobre o motivo do tão repentino desaparecimento. Ele foi logo desenrolando uma de suas histórias confusas, sem pé nem cabeça. Eu apenas concordava fingindo levar a sério, mesmo sabendo que metade era lorota, metade cascata. Mas quem se importava, se quisesse ouvir verdades não o teria chamado.

— Mas estou sabendo de umas coisas que estão me deixando chateado – ele disse interrompendo uma das histórias. – Estou sabendo que você anda numa maré de azar.

— É... coisa pouca... as coisas não estão dando muito certo... – desconversei.

— Tu tá na pior, não é? Eu sei disso.

— Não gostaria de falar sobre isso, Clédisson... – tentei me esquivando.

— Você não precisa falar, pode deixar que eu falo.

— Não, espere aí...

— Continua sem emprego, sem dinheiro, sem mulher...

— Poxa... obrigado, não esqueceu de nada?

— Ah sim, tem outra coisa, você está quase sem cabelo. Tá ficando careca, hein?

Como eu estava dizendo, esse Clédisson Craveira não vale nada, maldita hora que resolveu voltar para essa droga de cidade. Eu deveria chamar a polícia para enxotar esse...

— De qualquer forma, meu amigo – pôs a mão no meu ombro em tom tranqüilizador. – Uma coisa eu tenho que lhe dizer sobre esse momento difícil que você está passando.

— Eu sei, isso tudo vai passar...

— Não, a tendência é só piorar.

— Como é!?

— Piorar, você sabe, com o tempo as coisas só tendem a piorar de vez, mas não precisa se preocupar...

— Como assim "não precisa se preocupar"?

— Não precisa se preocupar com isso. Para enfrentar um momento ruim como esse, você tem que ter somente uma coisa.

— Uma coisa?

— Sim, basta ter uma coisa para enfrentar tudo isso.

— Você diz... esperança? Tem que ter esperança?

— Esperança? É, pode ser... mas eu estava me referindo a isso – disse tirando uma garrafa de vinho da sacola do supermercado.

Quando ele esvaziou a sacola não pude conter a risada. E pensar que por um instante eu achei que o Clédisson Craveira fosse proferir palavras sábias e tranqüilizadoras, desejando paz nesse momento tão ruim, dizendo que dias melhores virão, coisa e tal. Que nada, eu já devia ter me acostumado com a maneira rústica dele enfrentar os infortúnios da vida, esvaziando uma garrafa de alguma bebida, de preferência bem barata.

Quando dei por mim, estávamos rindo de nós mesmos disputando no par ou impar a última dose do vinho. Naquele dia, o Clédisson achava que tinha trazido apenas uma garrafa de vinho de barato, porém, aposto que ele nem percebeu que me deu um porre de esperança.


Comments:

Home