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terça-feira, julho 27, 2004
Posted
11:04 AM
by André Melo
Planejando encontros casuais
— E qual o número, senhor? – perguntou a vendedora.
— 40.
— 40?
— Aliás, 40 não, 41 fica melhor – corrigi a tempo. – Meu pé é um pouco largo, o 40 vai ficar um pouco apertado.
É engraçado ver como a simples rotina pode variar de pessoa para pessoa, como alguns vivem num ritmo mais tranqüilo, sossegado e outras estão sempre no pique, cheio de afazeres e compromissos. É nesse segundo tipo de pessoas que encaixo a minha amiga Fernanda, no grupo das pessoas hiper-ativas que faz o dia render um pouco mais do que as 24 horas normais.
Embora inveje o potencial e a dinâmica delas, comecei a notar uma certa dificuldade em conviver com essas pessoas graças a Fernanda. Descobri o quanto é difícil conseguir encontrar as pessoas hiper-ativas para um compromisso casual, uma conversa simples ou algo do gênero. Elas nunca têm tempo, nunca. Pelo menos nunca quando nós queremos encontrá-las.
— Poxa, o senhor vai ter que me desculpar, mas não temos o número 41 – desculpou-se a vendedora.
— Sendo assim, pode ser o 40 mesmo. Depois de um tempo eles dizem que alarga...
Percebi isso quando tive a feliz idéia de chamar a Fernanda para o cinema. Tudo bem que isso não é o que se pode chamar de compromisso casual ou conversa simples, mesmo assim o problema de agenda sempre impediu a realização desse programa. O máximo que conseguia dela eram pequenas janelas de vinte minutos intercalados no meio da semana. Sabia que desse jeito ficaria difícil ver algum filme com ela, mesmo assim tive vontade de propor que fossemos assistir pelo menos os traillers.
— Puxa vida, senhor, o 40 também não tem... – disse toda penalizada.
— 40 também não?
Como sabia que não se animaria em sessões de traillers, passei para um plano mais radical. Na verdade não foi uma idéia minha, essa prática já é feito há algum tempo, tive apenas que fazer pequenas adaptações. A coisa toda se baseava nessa onda de seqüestros relâmpago, quando se seqüestra a pessoa e mantém em cativeiro por um curto período de tempo até que se consiga dinheiro. A minha idéia era quase assim, eu iria seqüestrar a Fernanda e a manteria em cativeiro em um curto período de tempo (correspondente a uma sessão). Obviamente, a prática não teria o intuito de recolher dinheiro, só partiria para esse objetivo se ela quisesse uma porção de pipoca.
— Se o senhor quiser, eu posso deixar encomendado para o seu número, certo?
— Se for o único jeito... – disse aceitando a proposta.
A coisa piorou ainda mais quando as obrigações profissionais passaram a enviar a Fernanda para outras localidades, outras cidades e até outro estado. Quanto a mim, você pode imaginar o estado de desespero que fiquei. Encontrar a minha amiga tinha se tornado uma tarefa das mais complicadas.
Analisando a agenda da moça, comecei a pensar em novas formas de realizar possíveis encontros, tendo em vista que o bom e velho cinema não estava surtindo efeito. O único jeito seria me encaixando na sua rotina diária para que um encontro casual fosse casualmente planejado.
Em horário comercial ela trabalha, pelo menos por enquanto porque se conseguisse que fosse despedida teriam muito tempo para encontrá-la. Eu poderia fazer uma visita levando flores e jornal de Classificados Empregos, chamaria isso de "Romantismo em Tempos Bicudos".
Após o horário de expediente, ela tem os compromissos ligando à dança, seja ensinando sapateado ou tendo aulas de ballet. Sobre isso, não posso fazer muito, minha habilidade no que diz respeito à dança é praticamente nula. Além disso, não fico bem de colan e meia-calça.
— Talvez demore algumas semanas para chegar o número 41, tudo bem?
— Tudo bem.
— O senhor tem que entender que não é todo dia que procuram uma sapatilha de ponta número 41...
De qualquer forma, não vale à pena ficar atrelado a conceitos velhos e antigos. O machismo já é coisa do passado. Além do mais, vai que eu começo a gostar da coisa?
— A meia-calça, o senhor vai querer de que cor?
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terça-feira, julho 20, 2004
Posted
6:37 AM
by André Melo
Numa dessas manhãs de inverno
O carro dá uma freada brusca e pára alguns metros depois de mim. A porta se abre e dou de cara com a vizinha do quinto andar. A supervizinha do quinto andar.
— Por favor, me desculpe, eu sujei você, não foi?
Antes que pudesse balbuciar qualquer coisa, ela puxou um lenço da bolsa e passou carinhosamente no meu rosto.
— Venha comigo – disse me conduzindo ao seu carro. – O mínimo que posso fazer agora é te dar uma carona.
Antes de fechar a porta do carro, ainda vi o reflexo da minha cara estampada no vidro, era uma alegria mal disfarçada, um sorriso no canto da boca. Finalmente eu estava conhecendo a vizinha do quinto andar. E graças a uma situação tão inusitada, aquilo era bom demais...
BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ!!
Parecia armação...
BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ!!
Como se fosse um sonho...
BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ!!
Pare com isso!! Dou um tapa no despertador para desligar aquele barulho insuportável. Abro o olho e me vejo deitado na cama, estava acordando naquele instante. Acordando não, isso eu só farei daqui uns quinze minutos. Instantaneamente sou tomado por um frio que invade as cobertas, bem coisa dessa época do ano.
Levantando da cama, os compromissos voltam à mente jogando os sonhos para um baú lacrado. Como de costume, tomo um banho bem quente para despertar completamente. Atitude impensada, se soubesse do frio dessa manhã teria adiado temporariamente a higiene pessoal, talvez pra daqui umas oito luas. Olho para a janela e um baita pé-d’água chama atenção. Porcaria de dia.
Já não bastasse o frio, a chuva também marcava presença no inverno curitibano. Porcaria de inverno. E pensar que na TV só se falava em aquecimento global, efeito estufa... tudo balela! Uma baita propaganda enganosa, isso sim. Essa história de desmatamento, poluição, camada de ozônio, nada disso adiantou, o inverno continua um frio desgraçado.
Não tem jeito, compromisso é compromisso, trabalhar no inverno ninguém gosta, mas alguém tem que fazer. Verdade, eu também acho uma desumanidade ter que trabalhar em meio a condições climáticas tão adversas. Arriscar a saúde com essa ventania, a integridade física com o risco de tomar uma friagem, acabar adoecendo e morrer estropiado, com o nariz escorrendo. As autoridades deviam proibir qualquer ofício na época do inverno, voltando ao trabalho somente no verão, que é uma época de clima mais favorável. Mas pensando bem, trabalhar no verão também é muito arriscado. O cidadão naquele calor acaba tomando uma insolação, fica todo queimado e conseqüentemente desidratado, daí resolve tomar um picolé pra refrescar, acaba adoecendo e morre estropiado, com o nariz escorrendo.
Diazinho infernal, isso sim. Pior é pensar no que ainda vem pela frente, me refiro ao ônibus em dia de frio e chuva. Acho que vai ser a primeira vez que vou ficar feliz se estiver lotado. Um pouco de calor humano não iria mal. Mas não era hora de pensar nisso, rapidamente dou um golão no copo de leite já finalizando o café da manhã. Com um movimento, apanho a mochila e saio. É agora ou nunca.
De frente para espelho, ajeito o cabelo pensando no dia horrível que faz hoje: um frio de lascar com uma chuvinha besta. E pensar que quando o elevador chegar, o porteiro ainda vai me dizer "Bom dia!". Onde já se viu, "Bom dia"? Só se for para ele, pra mim está mais para "Ruim dia".
O elevador chega e desço parecendo um boneco de neve para enfrentar o tempo. Fui chegando perto do porteiro com uma resposta na ponta da língua para o tradicional "Bom Dia!", porém, eu passo quase sem ser notado. Abro a porta de saída sem entender o silêncio, me viro para trás e vejo o porteiro olhando o nada.
— Bom dia! – digo puxando assunto.
Ele responde balançando a cabeça, pensando consigo "Bom dia?".
A porta se fecha e ganho a rua. Logo na primeira esquina, sou surpreendido com um carro que passa em alta velocidade espirando a água de uma possa. Não me sujo tanto graças a uma esquiva estilo Matrix, mesmo assim fico com o rosto todo sujo. O que mais pode acontecer num dia como hoje?
O carro dá uma freada brusca e pára alguns metros depois de mim. A porta se abre e dou de cara com a vizinha do quinto andar. A supervizinha do quinto andar.
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terça-feira, julho 13, 2004
Posted
9:20 AM
by André Melo
“Pacote Risada por apenas R$ 250”
Todo dia era a mesma coisa, Estevão se levantava cedo e era o primeiro a chegar na repartição. O primeiro a chegar e o último a sair, pois o chefe sempre arranjava alguma coisa extra só para ele. Tamanha preferência era devido a sua inquestionável eficiência, o que lhe valia uma carga muito maior de trabalho do que os colegas, o que não implicava em benefícios. Aliás, a única coisa que conseguiu ganhar com isso tudo foi a fama de puxa-saco, que circulava na hora do cafezinho.
— E daí, tô pouco me lixando! – repetia para si mesmo.
Mas Estevão não era de ferro, também é um ser humano com vísceras, caspa, joanetes e também sentimentos. Por mais que agüentasse bravamente toda hostilidade, por dentro se sentia mal, triste. Ele queria muito desabafar, relaxar uma vez, nem que fosse só uma. Uma risada, ele queria rir, não fazia isso há tanto tempo que até tinha se esquecido como se fazia isso.
Outro dia, na frente do espelho, ele até tentou rir. Escreveu numa folha e ficou lendo repetidamente “rá rá rá rá”. Não ficou satisfeito da primeira vez, tentou outra também sem sucesso. Percebeu que não era tão simples assim, a pessoa tem que fazer isso só que sorrindo. Nossa, daí era complicado! Sorrir é um troço muito chato, ter que ficar com a musculatura da boca distendida o tempo todo. Em pouco tempo começava a doer tudo, teve que parar com medo de dar câimbra.
Sentou-se novamente na poltrona e ficou matutando como poderia rir. Estalou os dedos e logo se levantou, Estevão tinha tido uma idéia. Rapidamente foi até à escrivaninha e remexeu tudo atrás de alguma coisa, atrás de um durex. Quando encontrou, se dirigiu ao espelho do banheiro para ver se daria certo. Com a boca, cortou dois pedacinhos e colou um em cada bochecha, puxando os cantos da boca e simulando um sorriso. Mas aquilo não tinha graça nenhuma.
No dia seguinte, antes que voltasse para o trabalho com a cara de sempre, deu de cara com os dizeres de um cartaz colado num poste: “Pacote Risada por apenas R$ 250”. Como é? Sem entender ele leu novamente “Pacote Risada por apenas R$ 250”. Como pode um negócio desse, ele pensou. Onde já se viu?
Mas aquela história tinha que ser passada a limpo. Como embaixo tinha o endereço, fez questão de averiguar o anúncio. “Pacote Risada”, ele nunca tinha ouvido falar numa coisa dessas. Para não ir desprevenido, foi ao caixa eletrônico e sacou R$ 250 no ato. Como ele ia dar conta das contas do mês ele não sabia, mas se desse certo ele ficaria rindo à-toa.
Naquele dia ele saiu mais cedo da repartição, para a estranheza de todos. Seguindo as indicações de um conhecido, ele pegou o alimentador Cafundó do Judas para chegar ao endereço. Depois de muito viajar, ele desceu e teve que andar mais um bom tanto. Já estava pra lá de tarde quando chegou no local exato do cartaz, uma casinha velha de madeira. Para tirar logo qualquer dúvida, começou a bater palmas para chamar atenção.
— Pois não? – disse uma senhora saída da casa.
— O-oi, eu vi um cartaz na rua e gostaria de saber mais do Pacote Risada.
— Pacote Risada? O senhor vai querer quantos?
— Então existe mesmo?! Poxa, então eu quero um pra mim!
— Vai querer um? Vai custar R$ 400.
— Como é? – disse sem entender. – Mas no cartaz dizia R$ 250!
— R$ 250? Mas não custa R$ 250 não. Isso foi antes do aumento.
— Aumento? Poxa, mas o preço quase dobrou!
— Sinto muito, moço – se despediu quase fechando a porta.
— Espere, espere, não tem problema. Eu não tenho todo esse dinheiro no momento, mas, por favor, você não faz por R$ 250? Pode ser umas risadas usadas, meio velhas...
— Por R$ 250 eu tenho um Pacote Sorriso, se o senhor quiser...
— Pacote Sorriso? Então tudo bem, pode ser um Pacote Sorriso...
Estevão fez o negócio lá mesmo, R$ 250 por um Pacote Sorriso. Ainda na rua ele desembrulhou para ver do que se tratava. Estranhou o negócio, apalpou umas três vezes e até cheirou, mas acabou vestindo. Quando olhou para o espelho, viu sua imagem refletida com um magnífico sorriso, brilhante e reluzente, era um sorriso de comercial de creme dental. Naquele dia, ele voltou feliz da vida. Era quase meia-noite quando Estevão chegou em casa com o sorriso de orelha a orelha. Mas antes mesmo de tirar os sapatos, ele se dirigiu até o espelho do banheiro, desdobrou a folha e começou a recitar: “Rá rá rá rá!”.
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terça-feira, julho 06, 2004
Posted
6:52 AM
by André Melo
Falso Diagnóstico
Não sei se vocês sabem, mas de uns tempos pra cá eu estava preocupado com a minha situação capilar. Cabelo, você sabe, aquele negócio que nasce no topo da cabeça das pessoas. Estava preocupado porque achava que os meus fios estavam caindo, saltando fora, a pior coisa que pode acontecer com alguém jovem. Mal sabia eu que o pior mesmo ainda estava por vir.
De frente para o espelho, não me cansava de analisar a cabeleira. Tudo bem que não estavam lá em grande número, de qualquer forma achava que ainda atingiam o quorum mínimo. Mesmo assim continuava vigilante e atento à presença dos fios, fiscalizando o comparecimento de cada um. Para a realização dessa tarefa, aprendi que vendo nas últimas fotografias eu tinha um bom parâmetro.
Parece idiota, mas somente quando olhava para minhas próprias fotos tinha a impressão exata da saúde dos folículos. Observando entre uma foto e outra, via sempre o cabelo da mesma forma: não muito volumoso e desarrumado, isto é, normal. Me aliviava cada vez que via isso, porém, surpresa maior eu tive depois.
Se por um lado os fios ainda estavam da mesma forma, quando minha atenção se virou para o resto da cabeça, comecei a notar algo diferente. Estava tudo grande, maior do que de costume. A minha cabeça parecia maior, maior do que o de costume. Sem acreditar, pisquei os olhos algumas vezes, mas aquela imagem continuava lá. Meu Deus do céu, que diabos está acontecendo!?
Espere aí, aquilo ali não pode ser verdade. Procurei em outras fotos e o mesmo aparecia. Via que nas fotos antigas a minha cabeça estava normal, nas recentes, porém, crescia igual a uma melancia. A testa estava muito grande, grande e descoberta. O topo da cabeça, do crânio, também estava sem telhado. Coitado do cabelo, ele estava como sempre, só que diante de uma cabeça em expansão ele ficou tímido.
Minha cabeça estava definitivamente muito grande, era só questão de tempo para começarem a notar. As pessoas vão rir, os cães vão latir e as crianças chorar. Talvez eu devesse escondê-la, com um boné ou um toca. Entretanto, o processo já estava muito adiantado, teria que achar algo maior, talvez uma sombrinha ou um toldo.
Uma desgraça se abatera sobre mim, mas como tamanha anormalidade poderia ter acontecido? Deve haver uma razão, a cabeça das pessoas não fica crescendo assim, de uma hora para outra. A ciência pode ter uma explicação, não posso ser o único caso dessa desgraça. Desesperado, comecei a folhear um livro de medicina aqui de casa, me baseando exclusivamente pelas figuras bizarras. Tinha que ter alguma fotografia de uma cabeça gigante, tipo que... opa!
Era uma foto em preto e branco bem velha, digna de um filme de terror, uma criancinha cabeçuda. Em baixo, na legenda, se lia “hidrocefalia”. Meu Deus, então é isso que tenho!!!
Minha cabeça ainda não estava naquele estado, ainda bem, eu devia estar apenas no início da manifestação. Li apenas uma rápida descrição do caso e fechei aquele livro show dos horrores, tinha que correr atrás de tratamento antes que fosse tarde demais. Só guardei que meu problema se tratava de um acúmulo de líquido “cefalorraquidiano”, seja lá o que isso seja.
Maldito líquido cefaloiraquiano, como posso ter acumulado esse negócio sem nunca ter bebido esse troço? Deve ser uma dessas porcarias que põem nos refrigerantes, agora estou com a cabeça crescendo por causa disso. Mas aquilo não podia ficar assim, do mesmo que ingeri esse negócio, tinha que eliminá-lo. Antes que minha cabeça não passasse pela porta, corri até a farmácia para resolver isso.
— Posso ajudá-lo? – a moça veio me atender.
— Estou precisando... estou precisando eliminar um líquido cefaloiraquiano.
— Como disse?
— Os malditos refrigerantes. Bebi demais e agora estou com muito líquido.
— Muito líquido... – repetiu sem entender.
— Você sabe... – disse apontando para a cabeça. – Você já deve ter percebido o meu probleminha...
— “Probleminha”? Ah sim, esse probleminha – apontou para minha cabeça quando entendeu. – Você está com sorte, recebemos ontem mesmo um produto novo, ideal para problemas como o seu.
— Poxa, que bom! Qualquer coisa que faça minha cabeça parar de...
— Está bem aqui – me interromper pondo um frasco escuro em cima do balão.
Peguei o produto intrigado e li no rótulo:
“Mega Super Hair: adeus à careca!”.
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