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terça-feira, junho 29, 2004
Posted
10:53 AM
by André Melo
Para pensar na fila
— Opa, opa, opa! – exclamou em bom tom o que todo mundo queria dizer. – Se quiser entrar tem que ser lá no final da fila!
A iniciativa deu resultado, os outros apoiaram a medida e reforçaram o protesto.
— A fila começa lá atrás.
— Isso aí, já pro final!
O espertinho em questão ainda ensaiou uma explicação, dizendo que a sua avó estava guardando lugar pra ele, mas não adiantou, o rapaz teve que dar meia volta e sair da fila. Aos que restaram, ficou a revolta.
— Tremenda falta de educação, furar a fila – alguém lembrou.
— Falta respeito ao próximo – a senhora falou de forma ecumênica.
— Uma sem-vergonhice! – a baixinha disparou.
Todos concordaram que furar fila era um tremendo desrespeito. Como o rapaz infrator já tinha sido retirado, enxotaram também a avó dele. Onde já se viu, ficar tentando furar a fila, pelo jeito a vovó não soube dar educação para o neto.
Os nervos estavam à flor da pele. Naquele momento, ai de quem tentasse levar vantagem. Também pudera, depois de mais de quatro horas na fila do INSS, qualquer um perde a paciência em um passe de mágica. O pessoal já tinha passado por todas as fases da espera. Começaram aguardando pacientemente, em silêncio e pensando na vida. Em seguida, as pessoas foram puxando assunto, falando do final da novela pra fazer o tempo passar. Só depois começaram a reclamam da fila, em forma de piada. Com o tempo, as brincadeiras foram ganhando um tom mais sério, se estendendo a críticas ao governo federal. Do Lula para a ALCA foi um pulo. Falou em ALCA é falar do Bush, o que leva a Israel, passando pela Palestina...
— Opa, opa, opa! – o mesmo sujeito da primeira vez dá o alarme, o que mobiliza os fuzileiros.
— A fila começa lá atrás!
— Se quiser entrar tem que ser no final.
— Não adianta tentar enganar.
O espertalhão ainda resmungou qualquer coisa, mas não adiantou. Furar a fila nem pensar, podia ser velhinha octogenária ou gestante dando a luz. Aliás, nem se fosse gestante octogenária que não iam deixar barato.
— Olha lá, olha lá! – sussurrou um deles.
As atenções todas se viraram mais adiante, flagrando um rapaz recebendo dinheiro de uma mulher. Estava vendendo o lugar na fila, o desgraçado. Não demorou muito um senhor mais voluntarioso tomou as dores e foi tirar satisfação com os dois. Ele chegou nervoso gesticulando enquanto lá atrás os outros vibravam com a atitude. Aos poucos se acalmou e começou a conversar com o rapaz e a mulher. Pouco depois o garoto voltou à fila e o senhor voluntarioso saiu contando dinheiro. Ele ofereceu um preço mais baixo e conseguiu levar a freguesa. Muitas vezes a livre concorrência é um troço revoltante.
De qualquer forma, quem poderia falar alguma coisa? As pessoas vêm pra cá tentando arranjar um dinheiro, seja pensão, seguro desemprego, aposentadoria ou auxílio-qualquer-coisa. Vender o lugar na fila é só uma mais forma alternativa de conseguir um benefício. Se o camarada viesse aqui todo dia poderia tirar o sustento. Profissão: Enfrentador de fila. Do jeito que tem filas nesse mundo, daria para atuar em diversos ramos, de cultura a esportes. Abrir uma empresa seria o próximo passo, funcionários treinados e especializados em enfrentar fila sem sentir dor nas pernas ou reclamar da demora. Pensando bem, acho que só eu não me dei conta de que isso já existe...
Uma euforia coletiva se instalou lá na frente, a agência do INSS estava finalmente abrindo. Era hora de recolher as cobertas e cadeiras de praia, lá dentro o negócio prometia ser bem rápido. Rápido, isso seria mesmo, mas não ia ser o fim dessa história. Hoje só deu pra pegar a senha, atendimento mesmo só no outro dia. Isso se não tiver greve...
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terça-feira, junho 15, 2004
Posted
10:34 AM
by André Melo
Pequenos detalhes que fazem diferença
— Tudo bem, meu amor, tudo bem... – disse passando a mão carinhosamente na franja de Eugênia. – Pode escolher a cor que você quiser.
Mais uma vez Afrânio evitava uma discussão fazendo os desejos da esposa. Começo de casamento é assim mesmo, o marido atende qualquer pedido, qualquer capricho da noiva. Mas esse era o jeito normal de Afrânio, calmo e pacato, do tipo que faz qualquer negócio para evitar um briga, ainda mais com Eugênia. Topou até pintar a casa de laranja, a última idéia da moça.
Tá certo que a moradia andava precisando de umas cores, porém, nem tantas assim. Cor de laranja era demais para ele, um cara tão discreto. “O que a vizinhança iria pensar?”, conversava com o travesseiro. Mesmo assim não teve jeito, em poucos dias o laranja podia ser visto nas paredes e muros, do piso ao teto. Por sorte a casa era tão pequena que não precisou gastar muito, poucas latas deram conta do recado. O resultado podia ser avistado de longe.
Como Afrânio previu, a vizinhança caiu de pau. Gente criticando e falando mal era o que mais tinha. Até gente que nem viu o resultado final apareceu só pra falar mal. Mesmo assim Eugênia ficou feliz, uma casa cor de laranja sempre foi seu maior sonho. Passou-se um tempo, quando a vizinhança cansou de pegar no pé deles, a cor laranja começou a proliferar na rua. Uma casa aqui, outra lá, tudo muito espontâneo e sem fazer alarde. As donas de casa passaram a exigir de seus maridos uma pintura alaranjada em seu lar.
O subúrbio começou a ficar diferente e finalmente a imprensa se deu conta disso. A televisão, que só visitava o bairro no noticiário policial, fez uma matéria destacando a cor laranja dos barracos. A essas alturas, Eugênia podia jurar que eles tinham sido os primeiros que ninguém acreditaria. Nas lojas de tintas, as cores laranjadas entraram em falta, as listas de espera aumentavam e as fábricas tiveram que dar horas extras para dar conta dos pedidos. Mais do que nunca, estar na moda era estar laranja.
Em Washington, o secretário de Defesa dos Estados Unidos chegou atordoado ao gabinete do presidente Bush. Ele tinha revelações bombásticas, só visíveis em fotos de satélite. No oriente médio estava tudo normal, judeus e palestinos se matando, homens bombas pipocando aos milhares, mas a grande ameaça não estava lá, estava na América Latina.
As fotos eram bastante claras, um lugar antes residencial estava assumindo uma estranha coloração alaranjada, “Alaranjado do Mal”, como passaram a chamar. Obviamente aquilo não poderia ficar assim, imediatamente Bush pediu explicações ao governo brasileiro, mas sem querer acabou mandando a mensagem por engano a Buenos Aires.
Como não conseguiu uma explicação sobre o “Alaranjado do Mal”, o governo americano resolveu tomar uma atitude por conta própria, isto é, cancelou todas importações de laranja provenientes do Brasil. Além disso, resolveu bombardear a Síria só por cautela.
Por aqui, o incidente das laranjas só serviu para deixar a coisa ainda mais preta. Protestos e passeatas se seguiram por todo mês, com direito a manifestantes apedrejando a embaixada americana com laranjas pêra. No governo, os desempregados da fruticultura obrigaram o presidente Lula voltar à China para divulgar o suco de laranja. Os produtores tentavam convencer que rolinho primavera e suco de laranja era uma combinação dos deuses, seja Deus ou Buda.
As investidas deram certo, na China o suco de laranja virou sensação. Navios carregados de laranja deixavam o porto enquanto outros de bandeira chinesa chegavam carregados de muamba. Nunca se viu tanta muamba circulando em terras brasileiras. Era tanta que as lojas 1,99 tiveram que abaixar o preço e passaram a se chamar Loja 1,92. Os falsificados dominaram o mercado.
Em Washington, o secretário de Defesa voltou ao gabinete de Bush. As empresas americanas estavam quebrando por causa dos falsificados provenientes do Brasil. A rota China-Brasil-EUA de muamba chegou ao conhecimento do Tio Sam. Rapidamente, o senhor aposentado ligou para o governo e comunicou tudo. As relações entre Brasil e Estados Unidos, já desgastadas pelo incidente das laranjas, ficaram ainda piores. Os americanos passaram a suspeitar da presença de armas de destruição em massa em terras brasileiras.
— Roxo? Mas logo roxo? – pergunto Afrânio indignado.
— Mas é que o meu sonho, na verdade, sempre foi uma casa roxa... – disse Eugênia daquele jeito meigo que só as mulheres sabem fazer.
— Tudo bem, meu amor, tudo bem... – disse passando a mão na franja da esposa. – Pode escolher a cor que você quiser...
A casa ficou roxa e, sem saber, ele tinha acabado de salvar o país de uma desgraça.
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terça-feira, junho 08, 2004
Posted
9:45 AM
by André Melo
Não mude de assunto, moça!
Ela deve achar que sou idiota, só pode ser isso. Porque tem que ser muito idiota para não perceber que ela está se enroscando com outro cara. Desgraçada.
Eu já estava desconfiado faz um tempo. Bastava olhar para cara dela que dava pra notar que tinha alguma coisa diferente. Quando a gente conhece bem a parceira aprende a distinguir pequenos detalhes, por isso eu já desconfiava desde o início. Ela, é claro, nunca disse nada, ficava escondendo o jogo. Muita ingenuidade a dela achar que poderia me enganar por muito tempo.
Por fim, eu tinha logo que saber a verdade. Muitos homens fogem ao máximo da prova final, eu não, só queria saber a verdade, não importava qual fosse. Desconfiava que pudesse ser alguém do trabalho, alguém da firma onde ela trabalha. Sendo assim, vesti uma roupa diferente da habitual, praticamente me disfarcei como nos filmes, e zarpei para a região da firma dela. Fiquei fazendo hora numa banca de revista com o olho atento para a saída do prédio. As pessoas iam saindo e nada dela, nessa hora tem que ter calma.
Comecei a folhear a revista quando o dono me falou que não podia fazer isso, nessa hora ela desceu do prédio junto com um colega. Larguei a revista e segui no encalço dos dois. Obviamente fiquei a uma distância, não queria que ela percebesse logo de cara, mas ainda assim podia ouvir o que diziam.
Estavam falando coisas de trabalho, nada de relevante. Ele estava levando ela até o ponto de ônibus, tentando dar uma de cavalheiro, desgraçado. Para não dar na cara, fiquei do outro lado fingindo esperar o ônibus no outro sentido, dessa forma podia espionar frente a frente.
A cena que se seguia era a mais típica possível: o cara sendo o mais bom moço possível, fazendo brincadeirinhas e tal. Ela, porém, não ficava atrás, retribuía com gracejos femininos. Vendo aquilo tudo, eu estava louco da vida. Pra mim aquilo já era mais do que o suficiente, tive que me conter para não partir para cima dos dois, mesmo assim me mantive firme.
O primeiro ônibus passou e imaginava que ela tivesse ido, que nada, logo vi que os dois continuavam se ensebando no ponto. Brincadeiras pra lá, gracejos pra cá, a coisa estava de embrulhar o estômago, mas estava querendo ver até onde ia isso.
O segundo ônibus passou e eles continuavam lá. Eu estava por demais enojado e querendo ir embora, mas quando voltei a espionar, os dois já estavam abraçados. Desgraçada, ela estava abraçada com aquele sujeito totalmente despreocupada, com a maior naturalidade, como se o que estivesse fazendo fosse certo. Era o fim da picada, pra mim tinha sido o suficiente. A casa caiu, mocinha.
Abandonei o ponto de ônibus com passos enfurecidos. Batia o pé com tanta força que até a calçada tremia. Cheguei por trás do casalzinho e fui logo puxando ela pelo braço de forma nada sutil.
— Ai! – ela exclamou se virando para mim. – O que é isso!?
O sujeito que estava com ela esboçou uma reação, mas fui logo botando ele no seu devido lugar.
— Olha aqui, rapaz, não se mete não, isso não te diz respeito. É só entre eu e ela.
— Mas o que significa isso!? – ela tomou as dores.
— E você, mocinha, depois de ficar dando esse showzinho aqui no ponto de ônibus, quem é você pra vir me dizer o dizer o que é certo.
O casal se entre olhou sem entender, quando eu fui logo botando os pontos nos is.
— Eu estava observando vocês dois há um tempão. E há um tempão vocês estão nessa ensebação, se agarrando...
— O que é que tem!? – ela perguntou, histérica.
— O que é que tem? Você acha que eu sou algum idiota, é isso? Eu estou vendo que vocês estão se enroscando. Você está me traindo!!
O sujeito a puxou pelo braço e perguntou sem entender:
— Ele é seu namorado? Você nunca me falou dele!
Completamente transtornada, ela se virou para mim e exclamou aos berros:
— Mas eu nem te conheço!!
— Não mude de assunto! Não mude de assunto!
— Eu nem conheço esse cara, eu nem conheço! – repetiu para o sujeito.
As Mulheres são assim, quando ficam sem argumentos mudam de assunto para fugir da discussão. Com essa daí não foi diferente, quando viu que eu estava com a razão, mudou de assunto, saiu pela tangente e fugiu nos braços do sujeitinho. Desgraçada. Tive vontade de xingá-la, armar o barraco. Se pelo menos soubesse o nome da infeliz...
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terça-feira, junho 01, 2004
Posted
9:49 AM
by André Melo
Pichação com a melhor das intenções
— Rápido, rápido – gritou silenciosamente. – Por aqui!
Pedro seguiu mata a dentro logo atrás de Ezequiel, que era mais velho e tinha mais experiência nesse ramo.
— Tem certeza que vai dar lá?
— Claro que vai, eu sei o que estou fazendo.
Os dois seguiram passando por uma fresta no muro de um terreno baldio. O muro em si não valia a pena, já estava tão sujo e acabado que uma pichação a mais não iria fazer diferença. Sim, eles eram pichadores, mas não qualquer tipo de pichadores.
— Trouxe as coisas?
— Estão aqui – disse passando a sacola cheia de sprays.
— Legal...
— Mas, Ezequiel, onde é que vai ser? Cê disse que naquele muro não valia a pena...
— Sim, claro. O muro tava velho e sujo, a gente podia escrever que ninguém ia conseguir ler.
— É, mas e daí? Aqui não tem nada que dê pra pichar.
— Ahn é? Então dê só uma olhadinha para lá – falou apontando para o prédio ao lado.
— O hospital? A gente vai pichar o hospital?
— Isso mesmo. Não tem lugar mais apropriado do que o hospital.
— Não sei não – Pedro disse desconfiado. – Acha mesmo isso certo?
— Fica frio, garoto. Eu sei o que estou fazendo.
— Não sei o que iam achar disso lá na paróquia...
— Olha aqui – falou agarrando no braço do rapaz, estava nitidamente nervoso. – Se você quer pular fora, é só falar! Não preciso da ajuda de nenhuma donzela medrosa!
As coisas silenciaram por um instante. Depois da dura de Ezequiel, Pedro abaixou a cabeça e concordou em fazer o serviço. Além do mais, que se dane o hospital, nada mais era do que um lugar cheio de doentes. A pichação ia ser bom para eles também.
— Dá um pezinho aqui – Ezequiel pediu ajuda pra subir.
Depois de chegar lá em cima, ele estendeu o braço e ajudou o Pedro. Os dois estavam lá em cima, ao lado do letreiro com o nome do hospital. Eles tinham agora todo aquele prédio branco para pintar, aliás, pintar não, pichar. Enquanto agitava a lata, Pedro não conseguia conter o entusiasmo, aquele ia ser o maior trabalho deles.
— E aí, qual vai ser?
— Qual vai ser? Não sei, ainda não pensei nisso.
— Como não pensou nisso? Mas já estamos aqui, certo?
— Certo, mas que ainda não decidi. Qual você sugere?
— Eu gosto do 9, acho bonito.
— Não, é muito otimista, não combina com hospital.
— Então põe o 13, esse daí é bem barra pesada.
— Aí também não. A gente não quer começar uma onda de suicídio entre os pacientes. Vamos pôr o 42, não consigo pensar em nada melhor.
— E se fosse o 102? Acho até que combina...
— Bem lembrado, tem o 102! Vamos pôr o 102!!
Ezequiel começou prontamente o serviço, tinha que ser rápido para poder logo sair em segurança. Por sorte o 102 não era muito longo, deu para terminar num instante. Quando acabou, Pedro ficou admirando o resultado final, poucas vezes uma pichação tinha sido tão bem feita. Só foi interrompido por um barulho de apito.
— Xii... sujou! – Ezequiel já tinha sacado tudo.
— O que foi?
— Anda logo!
Os dois desceram no pinote, deixando todas coisas para trás. O mais importante agora era salvar a própria pele.
Quando o segurança chegou, os dois já tinham pulado o muro e escapado. Tinham a estratégia de fugir um pra cada lado e rapidinho sumirem do mapa. Não foi dessa vez que Ezequiel e Pedro foram pegos. Se refazendo do susto, os dois se encontraram novamente duas quadras pra baixo.
— Missão cumprida, chefe!
— Com a graça de Deus!
— Louvado seja! – finalizou apertando a mão do colega.
Essa foi mais um triunfo para o currículo de Pedro e Ezequiel, os “Pichadores de Cristo”. Horas depois o dia clareou calmamente, a única diferença foi no letreiro do hospital, que ganhou os dizeres do primeiro versículo do Salmo 102. Com a graça de Deus, é claro.
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