o salamandra

terça-feira, novembro 16, 2004


Simples canetas?


Já vou logo avisando pra que as coisas fiquem claras desde o início: nunca acreditei realmente nessa história. Nunca levei isso muito a sério e gostaria que isso ficasse registrado.

Tudo começou em um desses e-mails absurdos que algumas pessoas inconvenientes insistem em me enviar. É claro que eu jamais cometeria a deselegência de denunciar a pessoa que se diverte com mensagens pouco adequadas e até certo ponto obscenas. Por outro lado, me sinto na obrigação de alertar às autoridades da necessidade de um tratamento psicológico para Luiz Cláudio da Luz.

O tal e-mail lançava uma dessas teorias absurdas que povoam a internet. Obviamente, eu não seria otário de acreditar em mais uma dessas "teorias da conspiração", mesmo assim resolvi ler a mensagem. A teoria em questão falava das canetas bic, aliás, do perigo existente por trás de uma simples caneta bic.

Canetas bic, vocês sabem, aquelas esferográficas que todo estudante usa ou pelo menos alguma vez já usou. Segundo o e-mail, escrever seria apenas uma das funções caneta bic. Elas seriam, na verdade, microfones e câmeras usados para monitorar as pessoas. Esse monitoramento seria feito por ninguém menos que extra-terrestres!

Sim, extra-terrestes! Extra-terrestes vindos de outros planetas!

Os extra-terrestes teriam feitos câmeras e microfones camuflados de canetas para bisbilhotar o que nós humanos estariam fazendo. O que realmente faria sentido, pois tudo que é feito é previamente planejado e depois escrito. E escrito por uma maldita caneta bic. Não vou dizer que acreditei, mas naquela noite me certifiquei de ter fechado bem o estojo antes de dormir.

As canetas bic serem na verdade câmeras alienígenas, onde já se viu tamanha loucura? Tudo bem que no e-mail eles contavam algumas coisas extranhas, como, por exemplo, o fato de ninguém saber de onde as canetas bic vêm ou onde são feitas. Além disso, o fato delas nunca terem mudado de forma, serem assim desde quando vieram pela primeira vez, isso em... peraí? Quando é que elas surgiram?

Estranho, estranho... na minha mente alguns pensamentos absurdos começaram a surgir. Vai que, numa dessas, o alerta tem razão e todos nós estivermos sendo observados nesse exato instante? As canetas bic estão em toda parte, não tem como fugir. Os e.t.s nos veriam fazendo tudo, comendo, dormindo, se trocando... eles nos veriam até quando estivessemos lendo aquele e-mail e descobrindo a verdade. A verdade que eu estou descobrindo agora!

Como que por um truque de mágica, nessa exato momento meus pensamentos são interrompidos por um som na escrivaninha, algo que caiu. Quando vou ver, quase caio pra trás. É uma caneta, uma caneta bic!

Num misto de pavor e fúria, destruo a caneta aos berros com uma pisada vigorosa. Está claro que os e.t.s sabem que eu descobri a verdade e farão de tudo para me impedir. Se eu quiser fugir, não posso mais ser visto por eles, isto é, tenho que destruir todas as canetas bic por perto. Rapidamente, vasculho a mesa onde elas possam estar escondidas. As que encontro, destruo no ato. Mas não tem jeito, meu apartamento já está cercada por elas, o melhor é sair de casa.

Mesmo desarrumado, saio em disparada carreira pela rua. Por distração, acabo trombando com um grupo de estudantes. Um deles não consegue evitar a queda do material de aula, deixando um punhado de canetas bic cairem no chão. Dou um sonoro grito ao ver todas aquelas câmeras alienígenos no chão me olhando. Antes que tenha tempo de fugiu, sou dominado e levado por enfermeiros.

Quando recobro a consciência, noto que estou num leito de hospital. Tento me mover e quando percebo estar amarrado. Estico o pescoço e vejo minha ficha de internamento. Em letras garrafais aparece escrito "dobrar a medicação". Olho ao redor e não vejo nenhuma caneta bic, por outro lado, a ficha de internamento parece ter sido preenchido a caneta!


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terça-feira, novembro 02, 2004


Comemorações do Dia de Finados

— Rápido, vamos logo com isso! – disse puxando o garoto pelo braço. – Seu Isidoro, o senhor não vem?

— Espere um pouco, estou colocando o paletó.

— Colocando? Poxa, não dá pra ser mais rápido?

— Prontinho, prontinho – disse saindo do quarto estufando o peito. – Elegante, eu sei, pode dizer...

Seu Isidoro tinha colocado o paletó azul marinho, como sempre fazia todos os anos. Aposto que também iria contar a história do paletó, que foi presente de sei lá que tia e que trouxe de sei lá qual lugar. Ele adorava repetir essa história cada vez que veste o traje.

— Não sei se eu já te contei, mas esse foi um presente da minha tia Cotovina que trouxe o paletó lá da Catalunha!

— Sei, sei... Tia Cotovina da Catalunha... agora que terminou podemos ir?

Os três enfim estavam prontos, iam repetir a tradicional cerimônia de 2 de novembro. Como toda família que se preza, os Souza Passos também iriam homenagear seus antepassados, deixando uma lembrança e fazendo umas orações. Sendo assim, seu Isidoro, dona Salete e o pequeno Basílio não podiam faltar. Para isso, se produziram à altura, com direito a trajes escuros e cabelos lambidos. Eles não podiam fazer feio frente ao resto da família, embora os parentes nunca tenham reparado muito neles.

Andando calmamente para não amassar os trajes, eles chegaram à entrada do cemitério abarrotado de gente. Mesmo com toda dificuldade em transitar naquela confusão, no fundo eles estavam se divertindo muito, os cemitérios se tornam um ambiente bem vivo nessa época do ano. Sem qualquer indicação, eles sabiam como chegar ao lugar certo. Quando se aproximaram, notaram que quase todos estavam lá.

O seu Isidoro ficou animado em vê-los depois de tanto tempo. Dona Salete ficou impressionada como todos estavam mudados, parece até que o tempo voa. Só o pequeno Basílio que estava indiferente, pois tinha ido para tantos Dias de Finados que nem se surpreendia mais. Vendo a família em silêncio ao redor do espaço dos Souza Passos, os três conversavam discretamente.

— É impressão minha ou a Lucia está mais cheinha dessa vez? – disparou dona Salete.

— O quê?

— Engordando, você sabe, ela está ficando cada vez maior.

— Pelo amor de Deus... – Isidoro reprovou o tom fuxiqueiro da conversa.

— Calma, só estou comentando.

— Numa dessas ela tá grávida – Basílio embarcou na especulação.

— De novo?

— Se isso for verdade, você ganha mais um sobrinho, Basílio.

— Legal!

— Legal é? E a conta bancária do seu irmão, onde é que fica?

— Dona Salete, dona Salete, sempre procurando o lado trágico das coisas...

— Isso porque não é com você. Mas também ninguém mandou o Antônio ficar aí, fazendo filho ao atacado.

— Esse meu irmão caçula não tem jeito mesmo...

As orações pareciam ter cessado no túmulo dos Souza Passos, aos poucos os familiares se preparavam para ir embora. Com cumprimentos sutis, a parentada se despediu e abandonou o cemitério movimentado. Os três ainda permaneceram lá um tempo, curtindo as flores novas.

— Cada ano parece que ficam menos tempo – disse Salete desgostosa.

— Pelo menos vieram.

— Você tá feliz porque sempre é o mais festejado, olha só quantas flores você ganhou, Basílio?

Seu Isidoro estava certo, o túmulo de Basílio era sempre o mais homenageado. Eram tantas flores que até tampavam a foto do menino que foi atropelado quando corria atrás da bola de futebol. Dona Salete também tinha razão de estar chateada, suas irmãs não vieram visitá-la novamente. Qualquer hora vai descobrir que elas morreram há algumas décadas. Três para ser mais exato.

— Estão vendo aqui? – dizia seu Isidoro mostrando a foto colada na lápide. – Esse sou eu alguns anos mais moço vestindo esse paletó. Não sei se já contei, mas ele foi um presente da tia Etelvina, que comprou na sua viagem pela Sicília.

— Sicília?

— Sicília.



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terça-feira, outubro 26, 2004


Bandeiras contra o desemprego

As eleições já estão chegando e em breve todo aquele burburinho eleitoral vai acabar com o barulhinho da urna eletrônica. Será um alívio danado. Depois disso, tchau e benção, não quero ouvir falar de política tão cedo. Eleição, então, nem a de síndico do meu prédio.

Tudo bem, sei que não sou nenhum cidadão exemplar no que diz respeito a eleição, mas é que esse ano as coisas parecem mais pegajosas do que o habitual. Ainda bem que nem todo mundo pensa como eu. O seu Arlindo, por exemplo, ele está chateado com o término do período eleitoral e tem um bom motivo para isso. Para que você entenda melhor, vou começar do início.

Mais uma vez as páginas dos classificados não traziam nenhuma boa notícia, tudo porque Arlindo não tinha muito estudo, experiência também não, pistolão idem. A salvação da lavoura foi a eleição, que recrutou milhares de pessoas esse ano. Como Arlindo não era lá um sujeito muito articulado, o encaixaram num serviço mais braçal. Braçal e braçal mesmo, era ele quem agitava a bandeira com o nome e número do candidato.

Embora tenha achado um pouco complicado no início, aos poucos foi pegando o jeito da coisa. Não demorou muito começou a chamar atenção pela maneira enérgica que tremulava a bandeira. Enquanto os outros precisavam de um vento forte para esticar a legenda do candidato, seu Arlindo reinava absoluto nas esquinas e cruzamentos do centro da cidade.

O 1o turno veio e para a infelicidade de Arlindo, seu candidato levou bomba: não fez muitos votos e nem ficou pro 2o turno. “Será que foi culpa minha?”, chegou a pensar. Por sorte, quando foi ao comitê acertar as contas, ficou sabendo da boa notícia. Um dos seus colegas já tinha acertado trabalhar para o outro candidato e precisava de alguém para cuidar da bandeira. Esse alguém era Arlindo.

Naquele dia, ele voltou todo feliz pra casa. Quando chegou foi outra surpresa, um sujeito engravatado estava convidando para trabalhar na campanha do outro candidato. Na empolgação ele aceitou mesmo sem saber como faria isso.

No final das contas, tudo se acertou. De manhã ele tremulava a bandeira azul de um candidato, de tarde a amarela do outro. Era tudo que ele tinha pedido a Deus, não desagradar nenhum dos lados e ainda ganhar para isso. Poxa, desse jeito ele nem se incomodaria de passar o resto da vida fazendo isso.

— Não seja bobo, Arlindo! – alertou sua esposa. – No final das eleições eles vão te chutar pra fora!

Ela tem razão – ele pensou –, quando acabarem as eleições vão acabar as bandeiras. Não demorou muito Arlindo se lembrou do caderno de classificados repleto de anúncios, mas nenhum para “tremulador de bandeira”. Precisava descobrir uma maneira de sobreviver depois das eleições.

Arlindo matutou o dia inteiro. As pessoas que o conheciam sabiam que algo estava errado pela maneira que estava balançando a bandeira. Por fim chegou à resposta e, de tão feliz, pediu para ter uma palavrinha com o senhor candidato.

— O plano vai salvar não só o meu emprego, mas o de todos agitadores de bandeira da cidade!

O candidato prestava muita atenção, Arlindo começou a explicar:

— Basta tirar todas as placas de trânsito da cidade. As placas, você sabe, eles só existem para atrapalhar as pessoas, sem falar que quando a gente está distraído...

— Sim, sim. Tirar as placas, e daí?

— Tirar as placas e substituir por pessoas agitando bandeiras.

— Como é? – o candidato tentou entender.

— A prefeitura tiraria a placa de trânsito e no lugar colocava uma pessoa agitando uma bandeira de “proibido estacionar”, por exemplo.

— hum?

— Ou então na estrada uma pessoa agitando uma bandeira escrito “cuidado queda de barreiras”.
Por fim, o candidato agradeceu a preocupação do seu Arlindo e disse que sua sugestão será encaminhada à futura Secretaria de Qualquer Coisa. Depois de um aperto de mão com direito a foto e um adesivo para pôr no carro (que não tinha), Arlindo voltou para casa intrigado. Queria saber como ele levaria sua sugestão se não havia sequer anotado. Não sei, algo me diz que ele não deu a menor bandeira.


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terça-feira, outubro 19, 2004


Vingança mal direcionada

— E aí, gordo burro!! Gordo burro!!

Imediatamente o sangue lhe subiu no rosto. Ele não pôde acreditar estar ouvindo aquela ofensa novamente. Suas mãos não seguraram a ira e ele amassou o jornal sem perceber. Virou-se para trás e só deu tempo de ver a moto saindo dando duas buzinadinhas de deboche.

— Maldito filho da... – resmungou baixinho.

Uma perseguição, só podia ser uma coisa desse tipo, coisa de filme de terror. Se estavam tentando deixar o Bernardo louco, finalmente estavam conseguindo.

Mas calma lá, sei que está parecendo estranho, mas deixe contar a história desde o início. Esse caso tem raízes profundas e só é possível entender se pudermos rebobinar a fita quase vinte anos atrás, quando Bernardo era apenas um garotinho como qualquer outro.

Ele tinha por volta dos seus 13 anos, na época em que começou a matar aula para ficar zanzando pela rua. Outra mania que tinha era economizar a passagem de ônibus para poder se encher de doces. Depois de matar tanta aula e comer tantas porcarias, ele acabou se tornando uma figura roliça e mal de notas. Foi a partir daí que começou tudo.

— E aí, gordo burro!! – escutou quando estava na banca de revista lendo gibi.

Quando ouviu, ele estranhou. “De quem devem estar falando?”, chegou a pensar. Mas não havia dúvidas, estava claro que o grito tinha sido direcionado para dentro da banca, onde só havia ele. O tal “gordo burro” que estava falando era na verdade Bernardo.

No dia seguinte foi a mesma coisa. Quando foi para a banca e lia um gibi, teve a leitura interrompida pelo mesmo grito estrondoso:

— E aí, gordo burro!!

Aquilo era pra ele. E quem poderia ter sido? O mesmo patife de ontem, pensou. Bernardo estava visivelmente transtornado, aquela provocação estava começando a irritar. E só estava começando, porque na verdade aquilo se repetiria no dia seguinte, no outro dia, depois e depois... Bernardo não agüentava mais ouvir aquilo, só não conseguia descobrir o que irritava mais, se era ser chamado de gordo ou de burro. Detestava as duas coisas principalmente porque ambas tinha uma pontinha de verdade.

Um dia, porém, ele resolveu dar um basta. Decidiu que não iria mais ser chamado de gordo ou de burro. Ele devia ter lá seus 21 anos quando decidiu encarar de frente o problema. Resolveu que finalmente iria tocar os estudos pra frente para ser respeitado, fez um supletivo e rapidinho recuperou os anos perdidos. Ainda assim, quando arrumava um tempinho extra, ia sempre fazer uma visita à banca de revista, mesmo assim sempre que chegava era recebido com a mesma homenagem:

— E aí, gordo burro!!

Sim, mesmo depois de tanto tempo, o cretino metido a engraçadinho continuava com as provocações. Mesmo assim Bernardo não desanimava, muito pelo contrário, essas coisas só lhe davam mais força para seguir em frente.

Se o estudo ele já estava recuperando, ainda faltava se livrar da fama de gordo. Começou então um plano ambicioso, que era alcançar o seu peso ideal. Isso sim daria muito trabalho. Após muitos meses de dieta, ele finalmente deu-se por satisfeito, conseguiu perder quase duas arrobas. Isso alguns meses antes de passar no vestibular.

Não precisa dizer que ele se formou e virou um advogado de sucesso, mas nada disso importou quando ele ouviu aquela maldita voz o chamando de gordo e burro mais uma vez. Ele precisava acabar com aquela assombração que o perseguia há tanto tempo. Mas agora Bernardo tinha um plano, um plano para acabar com o palhaço das grosserias.

Ainda de madrugada, ele retirou a tampa do bueiro para derrubar o motoqueiro maluco. Para reforçar, Bernardo cobriu o chão com cacos de vidro para aumentar os ferimentos. Por fim, encheu o caminho de tábuas e madeiras com pregos enferrujados na ponta para deixar o serviço completo. Dentro da banca ele ficou folheando uma revista a espera de tudo.

— E aí, gordo burro! – foi o grito que antecedeu um baita acidente.

Prontamente, Bernardo saiu da banca com a expressão de vitorioso. Quando chegou lá encontrou um senhor todo arrebentado, com prego e vidro por todo lugar.

— Gordo burro, me ajude aqui...

Bernardo ainda estranhou, pois nunca tinha visto esse sujeito. Enquanto pensava em atender, seu Adão, o dono da banca de revista, foi correndo acudir o moço.

— Antônio, que foi isso, meu filho?!

— Não sei, pai. O bueiro estava destampado e cai nesses pregos... e cacos...

— Vou pegar o metiolate!

— Metiolate o caramba! Chame a ambulância!

— Tem razão, tem razão!

O seu Adão voou com seu para dentro para o telefone, o filho ainda estava lá no meio fio todo estrupiado.

— Metiolate... só podia ser idéia do gordo burro...



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terça-feira, outubro 12, 2004


Aparelho que só confundem

Quando olhei para a Bia naquela festa quase não reconheci. É incrível a diferença que faz um simples aparelho nos dentes. Ela colocou aparelho e parece ter ficado totalmente diferente. Tudo bem que as plaquinhas de metal estão apenas nos dentes, mas alguma coisa além disso parece ter mudado. Pena que nesse caso a mudança não foi pra melhor.

— Pois é, eu gostava mais de como era antes... – cheguei puxando assunto com o Marcelo.

— hein?

— O sorriso dela – apontei discretamente. – Eu gostava mais como era antes. Antes do aparelho.

— humm... você diz isso por causa do metal...

— Não, é que eu gostava do jeito dos dentes dela antes.

— Quer dizer, tortos?

— Não eram tão tortos assim. Só não eram perfeitos.

— Eram encavalados, parecia engavetamento na BR – exagerou Marcelo.

— Tudo bem, que seja. De qualquer forma eu preferia antes do que com esse metal todo na boca.

Mas o que adianta? O negócio é me acostumar com o sorriso prateado para que, quem sabe daqui uns anos, vê-la com os dentes perfeitos, igual comercial da Colgate. Aquele sorrisinho engraçado da Bia nunca mais.

— Não sei se você reparou – retomei o papo. – Mas não foram só os dentes dela que mudaram.

— Como é?

— Sei que não faz sentido, mas desde que colocou aparelho notei que algumas coisas estão diferentes.

— Além dos dentes?

— Sim, além dos dentes, a começar pela postura. De uns tempos pra cá a postura dela está diferente.

— Postura? Eu não notei nada...

— Ela está andando diferente. Já ouvi falar em aparelhos que mudam a boca da pessoa, mas que mudam as costas é a primeira vez.

— Como assim? – perguntou sem entender nada.

— Eles devem ter mexido na coluna vertebral ou coisa assim... Deve ter sido para corrigir a mastigação.

— Cara, eu acho que não tem nada a ver...

— Tudo bem, mas essa não foi a única mudança. Até o cabelo dela mudou de cor. Antes era castanho e agora está loiro.

— Era castanho? Quando eu conheci já era loiro.

— Poxa, então você deve conhecê-la há bem pouco tempo...

— Pouco tempo? Na verdade desde o colegial!

— Então você não deve ser muito bom em notar essas coisas...

O Marcelo sempre foi um cara meio distraído. Distraído para não falar burrinho, daqueles que demoram para cair a ficha. Mas sabe como é, amigo a gente sempre perdoa. Quando encontra na rua cumprimenta e dá uns tapinhas nas costas. Às vezes aproveita e cola um cartaz nas costas “Eu sou, mas quem não é?”, mesmo assim continua sendo amigo.

— Mas sabe, a maior mudança vai além do cabelo e da postura.

— Qual é?

— Comecei a reparar agora no jeito dela. Ela está completamente mudada.

— Mudada?

— Sim, mudada. Ela que sempre foi mais quieta e discreta, agora está toda falante, dando atenção para todo mundo...

— É...

— E sem falar que está dando bola pra tudo quanto é homem.

— Como é?? – ficou indignado.

— É sério, ela está atirando pra todo lado. Quem chegar primeiro leva.

— Olha aqui, cara – começou a arregaçar as mangas. – Veja lá como fala da minha namorada!

— Namorada? Você está namorando a Bia?

— Que Bia, o quê? Ela se chama Roberta!

— Roberta?

Ainda levei alguns instantes para entender, só então percebi porque a Bia estava tão diferente. Simplesmente porque não era a Bia.

— Marcelo, esqueça o que eu disse, tinha confundido... Marcelo?

— Me chamo Agnaldo – respondeu com punho serrado.



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terça-feira, outubro 05, 2004


Por isso prefiro os dublados

Caía uma chuva daquelas, um temporal doido. Ele estava tão desesperado que saiu do carro sem guarda-chuva ou qualquer proteção. Ficou encharcado, é claro, antes de dobrar a esquina já estava todo molhado. Nessa hora dei graças a Deus por estar seco.

— Onde estão eles? – perguntou ainda esbaforido.

— Lá em cima – respondeu apontando.

Rapidamente ele se dirigiu até a escada de metal. Segurando no corrimão, dava passos largos subindo os degraus. O barulho dos passos ecoava por todo prédio, os outros moradores foram logo abrindo espaço para ele passar. Engraçado, no meu prédio nunca fariam uma gentileza dessa.

— Vamos, por... – ordenou o bandido na cobertura.

Ela ainda tentou gritar, mas ele estava tapando a boca da mocinha. Ele a tinha tomado de refém, uma atitude comum quando a bandidagem vai tentar escapar. Mas de tantas meninas dando sopa por aí, por que é que foi logo pegar ela? Se ela fosse qualquer uma ele até teria chance, mas ele pegou logo Susan, a namoradinha de Winston.

Depois de mais uns degraus, o herói finalmente chegou à cobertura. Foi lá que o agente Charles explicou a situação:

— Hanson escapou e fez uma refém. Ele quer a presença...

— Do governador? Fora de questão! – disse Winston.

— Eu sei que é, mas ele diz que só solta a refém se o governador vir a público e falar a...

Winston apenas balançou a cabeça enquanto carregava a pistola e empunhou com as duas mãos. Nós nos aliviamos, quando ele faz essa cara a gente sabe que vai dar tudo certo.

— Winston! – grita a namorada quando viu o rapaz.

Imediatamente ele reconheceu aquela voz. Não podia ser outra pessoa além de Susan, a menina que há muito tempo estava tirando o sossego do mocinho. A partir daquele momento ele começou a ficar nervoso. De nervoso que fiquei, parei até de comer a pipoca.

— Hanson, eu não estou armado. Estou querendo bater um... – disse Winston jogando a pistola no chão.

— Saia daqui, nenhum tira vai me impedir. Eu só irei daqui quando o governador Taylor vir a público e contar...

A tensão aumenta e ele está visivelmente nervoso.

— Winston! – conseguiu gritar Susan com os olhos chorosos.

— Espere, Hanson, mantenha a calma. Estou aqui querendo te ajudar – disse levantando os braços.

Por mais boba que pareça, a frasezinha parece ter surtido efeito. Hanson ficou mais aberto a negociações. Será que os policiais daqui do Brasil falam uma coisa dessas?

— O governador, ele sabe toda verdade, ele viu que eu não...

— A verdade virá à tona, Hanson. Os verdadeiros culpados... – disse Winston se aproximando lentamente.

— Eu nunca teria cometido o sacrilégio de fazer mal àquela...

— Me dê a arma, Hanson – pediu Winston esticando o braço em direção ao criminoso.

— Eu sempre gostei daquelas criaturinhas peludas. Quando era pequeno não podia...

— Me dê... – pediu num tom mais áspero.

— Não fui eu, não fui eu quem matou...

— A arma, Hanson!!

— Winston! – gritou a refém enquanto a música de suspense aumentava.

— Quem matou na verdade foi...

— O que você disse?!

— Estou tentando dizer que quem matou na verdade foi...

Imediatamente Winston caiu de joelhos no chão. Ele não podia acreditar que esse tempo todo o culpado tinha sido outra pessoa, alguém que ele jamais desconfiaria. Pouco depois disso o filme acabou e as pessoas saíram do cinema soltando elogios mil.

— E aí, André, o que achou?

— Bom, bom filme...

Respondi lentamente enquanto pensava em alguma resposta melhor. Por fim, resolvi abrir o jogo:

— O filme foi bom. O único problema foram as legendas, que trocavam tão rápido que às vezes nem dava tempo de eu ler as frases completas.

— O quê? Você não conseguia ler os diálogos inteiros? Você então não...


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terça-feira, setembro 28, 2004


História de circo

Eles se conheceram no circo, isso já faz um tempo. Ele fazia parte do “Grand Circo Veneza, a maior atração do velho continente”. A trupe existia há muitas décadas, criado pela tradicional família Gianini, que não vinha da Itália, mas sim de Uberlândia. Marlene era uma simples estudante do “Colégio Michigan, educação de primeiro mundo”, no município de Astorga. Eles se conheceram quando o circo veio passar uma temporada na cidade. Os cartazes falavam em apenas 5 dias, que por fim se estendeu por 2 meses. Num desses dias ela foi até lá para acompanhar os irmãos pequenos. Pelo menos foi esse o pretexto, pois quem queria ir era ela mesmo.

— Respeitável público! – exclamou um sujeito de fraque e cartola, pelo jeito o mestre de cerimônia.

Ele enumerou todas as atrações que poderiam ser vistas naquela noite. Fez isso usando sempre adjetivos lisonjeiros e engrandecedores, mais ou menos do jeito que o Faustão faz para apresentar as pessoas. A Marlene ficou muito impressionada.

— Samantha, a fantástica mulher elástica! Leon, o destemido atirador de facas! Francis, o surpreendente mágico de cobras! Os irmãos Rodriguez, os intrépidos do globo da morte!

Essas eram as maiores atrações do circo, é claro que haviam outras. Dentro do que podemos chamar de outras estava “Juan, o maior malabarista das três Américas!”. Obviamente ele não era tudo isso, mesmo assim conseguia muitos aplausos quando usava malabares em chamas. Seria ele que arrancaria suspiros de Marlene naquela noite.

Logo que Juan entrou no palco ela logo notou o homem. Além da pose imponente e do queixo protuberante, um bigodinho fino compunha o perfil do amante latino que Marlene sempre sonhara. Ela adorou o show de malabarismo, embora nem tivesse prestado muita atenção nos malabares. De tão impressionada que ficou, retornou dia após dia só para ver Juan, o maior malabarista das três Américas.

Depois de um tempo, ela não suportou ficar apenas admirando o artista, tinha que conhecê-lo de qualquer maneira. Sabendo de uma cunhada entendida dos castelhanos da vida, Marlene tomou umas lições e aprendeu mais ou menos um portunhol meia boca. Agora ela poderia finalmente conhecer o malabarista Juan.

Com as frasezinhas decoradas, Marlene o procurou em um dos traillers do circo que sabia ser o dele. Quando atenderam a porta, ela tratou de vomitar aquele portunhol bizarro.

— Me gustaria mujo conecer el malabarista Juan!

É claro que ele não entendeu patavina do que se passava, o espetáculo não havia começava e ele não era “Juan, o maior malabarista das três Américas”, e sim “João da Prata, o malabarista do triângulo mineiro”.

Ela ficou um tanto decepcionada de saber que Juan era João, mesmo assim aceitou entrar e tomar um cafezinho com ele. Papo vai, papo vem, papo vai, vem, devem ter conversado a tarde inteirinha, parecia que se conheciam há muito tempo. Sem falar que os dois tinham tanta coisa em comum, não dava pra negar. Os dois tinham nascido de cesariana, por exemplo. Isso sem falar que ambos foram mordidos por cachorro quando eram pequenos. Sei que essas coisas não têm nada de extraordinário, mas quando se está apaixonado parece algo traçado por Deus.

Um dia, João foi a procurar em casa, precisava falar com ela imediatamente. Naquela noite o circo sairia da cidade às pressas, dariam o calote não pagando o aluguel do terreno onde estavam. João foi lá para se despedir e quando deu por si Marlene já estava de malas prontas.

O circo saiu de Astorga e aterrissou em cidade. João agora tinha uma companhia no trailler e Juan ganhou uma ajudante de palco. Estavam muito bem até que o Grand Circo Veneza quebrou. A trupe agora estava desfeita. Todos os artistas tiveram que arranjar outros trabalhos para sobreviver, algumas vezes até tendo que largar os espetáculos. Juan, pelo menos, continuou a existir. Tudo bem que não era a casa de espetáculos que havia sonhado, de qualquer forma tinha a vantagem de ser ao ar livre. Era só o semáforo fechar que ele começava seu número. Marlene continuava sendo sua ajudante, passando a sacolinha entre os carros. Felizes? Claro que sim, menos quando chovia. Esse tempinho de Curitiba é um saco!

Só antes que me esqueça: Samantha está se desdobrando tentando empurrar revista no telemarketing. Leon atira facas no açougue Guanabara. Francis virou ator pornô. Os irmãos Rodrigues continuam intrépidos, dessa vez como motoboys.


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terça-feira, setembro 21, 2004


Sobre buquês e paixões

Revoltante, revoltante, êta troço revoltante! Por favor, desculpem o meu estado de nervos, minha revolta, mas às vezes fica difícil manter o controle. Se ao menos eu achasse onde diabos fui pôr o maço de cigarros. Por que é que a gente nunca encontra quando mais precisa?

Deixe para lá, eu também não fumo mesmo, quem estou tentando enganar? Além do mais, agora que a coisa toda está feita não adianta chorar nem espernear, tenho mais que encarar de frente. Afinal de contas, não é qualquer probleminha que vai me tirar do sério, certo?

— Bom dia, o senhor teria um minutinho para responder uma pesquisa que estamos fazendo?

— Cai fora daqui! – esbravejo para o moço da financeira que me interrompe no calçadão da XV.

Não quero que pensem que sou um desequilibrado ou coisa do gênero, mas esse tipo de problema costuma me tirar do sério. Mulheres, claro, é das mulheres que estou falando. Elas sempre arrumam um jeito de tirar o sossego e tranqüilidade da gente. Maldita hora que Deus criou as mulheres, as coisas só deram errado desde então. Por que em vez das mulheres Ele simplesmente não criou a boneca inflável?

Logo reconheçi o lugar pela grande variedade de plantas e coisas verdes. Estou vendo que vai ser uma longa procura até achar o mais adequado para ela. Em pouco tempo me perco em meio à imensidão verde, isso sem falar nos odores diferenciados. Nunca pensei seria tão difícil comprar flores.

Sabe, durante esse punhado de anos de existência sempre tive uma característica no que diz respeito a relacionamentos afetivos. Eu sempre me interessei somente pelas mulheres erradas, as chamadas popularmente de “chaves de cadeia”.

Não que fosse algum tipo de fantasia com as mulheres do sistema carcerário, é que, sabe-se lá o porquê, invariavelmente eu sempre acabava me apaixonando pelas mulheres erradas. Errada que eu digo são aquelas que não tinham muito em comum comigo, interesses diferentes, perspectivas diferentes e outras coisas diferentes. Com tantas diferenças não fica difícil entender que o final era sempre o mesmo: eu me estrepava.

Flores, flores, flores. Nunca pensei que existisse uma variedade tão grande assim. Eu que sempre achei que só existiam dois tipos de flor: as rosas vermelhas e as rosas brancas. As vermelhas você dá para a amada, as brancas você dá para outra pessoa que não a amada. Para a sogra você pode dar qualquer uma, a cor não influi, o importante é mandar um buquê bem grande e vistoso para que esconda a bomba relógio que se arma ao fundo.

Lembro que era um negócio muito maluco gostar da pessoa mesmo sabendo que ela não tinha muito em comum comigo. Gerava um conflito danado entre o lado racional e o emocional. Racionalmente, uma voz ficava sussurrando ao fundo “Isso não vai dar certo, isso não vai dar certo”. O lado emocional, por outro lado, enxergava tudo em cor de rosa, “Olha só, ela não é uma graçinha?”. Até hoje ainda é um enigma entender a pane que deixava o racional e o emocional em parafuso. Essa questão acho que nunca será respondida, mas algo me diz que a cintura fina e o quadril largo devem ter culpa nessa história.

— Vou ficar só com isso aqui – disse ao moço da floricultura. – O senhor poderia preparar um buquê?

Naquela época, eu sempre me apaixonava pela pessoa errada e tinha consciência disso. Obviamente, eu achava que aquilo era a pior coisa que poderia acontecer a uma pessoa.

— Com disse? – perguntou o rapaz intrigado.

— Um buquê, poderia fazer um buquê?

Mas a vida sempre arranja um jeito de piorar as coisas. Quando você acha que não tem como piorar, sempre bolam alguma forma de aumentar o nosso sofrimento.

— Você quer que eu faça um buquê? E com isso?

— Isso aqui não é uma flor? – perdi a paciência. – Pensei que vocês faziam buquê de flores numa floricultura!

Mal sabia eu que muito pior do que se apaixonar pela pessoa errada é se apaixonar pela pessoa certa.

— Floricultura? Claro que não, isso aqui é uma quitanda! E isso aqui que o senhor tá levando é uma flor sim, mas uma couve-flor! O senhor vai querer um buquê de couve-flor? – falou em tom gozador.

Só então me dei conta do engano, aquilo ali realmente era uma quitanda. Não sei como não percebi antes. Bem que estava achando as flores daqui meio feias, outras pesadonas demais. Para não ficar chato, acabei levando a couve-flor. Apesar de tudo, ainda acho que daria um belo buquê, talvez em forma de salada, no centro da mesa...



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terça-feira, setembro 14, 2004


Trocando os pés pelas mãos

A tranqüilidade da manhã é interrompida pela exclamação do despertador. Sete e meia, como de praxe, eu me levanto. Pelo menos essa é a intenção, pois pego no batente pontualmente às 8h. Não tão pontualmente pelo menos hoje. Antes que os lençóis me puxem novamente pra cama, me atiro para dentro do chuveiro.

Normalmente é só nessa hora que recobro os pensamentos, antes disso minha mente só tem lugar para os sonhos. Engraçado falar nisso, noite passada eu tive um sonho bem maluco. Pena que não me recordo de nada, só posso dizer que acordei com a sensação estranha de que tive um sonho sem pé nem cabeça.

Saio do chuveiro intrigado, alguma coisa não está certa. Me enrolo na toalha e vou para o quarto. A sensação estranha deve ser por causa de alguma coisa que vi na TV, me lembro de ter dormido na frente do aparelho ontem à noite. Só não me recordo do que estava assistindo, mais um indício de que estava dormindo. Bom, agora não importa, bola pra frente e paciência.

Terminando de me enxugar, resolvo dar uma atençãozinha para os pés. Agora não adianta correr que já estou atrasado no horário. Com a toalha entre os vãos dos dedos, começo a notar algo estranho. Espere aí, os meus dedos não são assim, alongados e finos. Será que não ando me alimentando bem e até os dedos emagreceram? Não pode ser isso, não eram só os dedos que estavam diferentes, o pé todo está mudado!

Melhor analisar com atenção. Sentei-me na cama e comecei a apalpar com cuidado os pés. Embora não tivessem qualquer lesão ou machucado, notei uma certa diferença. Eles pareciam menores e com os dedos alongados. Preocupado que estava, fui até a escrivaninha e peguei uma lente de aumento. Sendo assim, tratei de fazer uma varredura para ver o que se passava com o pé.

Após alguns instantes, finalmente conclui que aquilo não era um pé e sim uma mão! Não sei explicar como, mas de alguma forma os meus pés tinham se transformado em mãos. E mãos perfeitas, com polegar, indicador, dedo médio e etc. Imediatamente veio à minha cabeça a imagem dos pés dos macacos, que parecem mãos. Eles parecem que não tem pés, em compensação têm quatro mãos, que nem eu.

Mas espere um pouco, isso não faz o menor sentido. Nunca ouvi falar em pés virarem mãos, deve ser só uma impressão. Aposto que se for comparar uma coisa com outra vou perceber que são diferentes. Sendo assim, coloquei frente a frente os pés com as mãos para tirar essa história a limpo.

Num primeiro instante fui tomado por um grande alívio, pés e mãos eram duas coisas diferentes. Porém, pouco depois me caiu a ficha e a realidade se mostrou muito mais terrível. Os meus pés tinham realmente se transformado em mãos, como acontece nos chimpanzés. E a outra coisa ainda foi pior, as minhas mãos normais tinham virado pés!

Fui tomado por um desespero completo, sempre fui uma pessoa normal e um dia acordo transformado em uma criatura bizarra. Em vez das mãos, sou uma aberração que possui pés na ponta dos braços. Nas pernas, em vez de pés dando a sustentação, aparecem duas mãos. No que eu fui me transformar, meu Deus!?

Aquilo não podia ficar assim, tinha que ter uma explicação. Um médico! Tem que haver um médico nessa cidade que me deixe ao normal. Era só transplantar o pé no lugar da mão e a mão no lugar do pé. Ia sair caro, mas tinha que ser assim. Me deixando normal eu dou um jeito de descolar a grana.

Rapidamente me vesti para sair de casa. Percebi a dificuldade que era calçar os sapatos nas mãos, o que tornava andar muito mais difícil. Outro problema era sair com as mãos transformados em pés. Luvas eu sei que não entrariam, teria que usar meias para tentar camuflar as mãos transformadas em pés.

Com muito custo consegui terminar de me aprontar. Apesar da dificuldade que tinha em andar, eu iria atrás de um médico que pudesse desfazer essa loucura. Sem paciência de arrumar o cabelo, enfiei um chapéu na cabeça para sair de casa. Por força do hábito, fui até o espelho do banheiro e quase caí pra trás tamanha surpresa. No lugar na cabeça, a única coisa que se via era uma bunda!

Mãos no lugar dos pés e pés transformados em mãos até dá para suportar, mas no lugar da cabeça existir um par de nádegas era demais. Como eu poderia sair de casa com uma bunda em vez da cabeça?

— Poxa, André, que disposição! – disse minha mãe quando me viu sair do banheiro. – Mal acordou e já está aí, plantando bananeira.

“Plantando bananeira?”, pensei comigo mesmo antes de enfim entender o que se passava. Eu não tinha me transformado em uma criatura bizarra, com pés no lugar das mãos, mãos em vez dos pés e um traseiro no topo do pescoço, estava só todo esse tempo plantando bananeira. Acordei de manhã e sei lá porque cargas d’água achei que esse era o normal. Eu sabia que alguma coisa estava errada, só não imaginava isso. Tudo que posso dizer é que às vezes a gente troca os pés pelas mãos...



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terça-feira, setembro 07, 2004


Embalos do feriado

Feriado de 7 de setembro em Curitiba a história se repete: silêncio absoluto, lojas fechadas, calçadas vazias, a tranqüilidade paira no ar, ruas desertas sem aquele trânsito infernal, em resumo, um saco.

A cidade fica jogada às moscas, quem foi mais esperta já se mandou para o litoral. Para os que aqui ficam, os passatempos variam entre comer e dormir, dormir e comer, comer e comer, dormir e dormir. Apesar das múltiplas opções, todas pessoas que ficam em Curitiba têm uma coisa em comum: todas torcem, rezam e fazem figas para que nuvens carregadas se instalem e causando chuvas, tempestades e cataclismas. Não aqui, os fenômenos meteorológicos têm que ocorrer no litoral. Só nos vemos satisfeitos quando o noticiário mostra a tempestade em meio ao caos urbano.

Nesse momento estava esfregando as mãos com um sorriso maquiavélico quando a campainha soou repetidamente.

— Já vou, já vou!

Mesmo assim o barulho persistia, o que provava o autor da visita.

— Clédisson Craveira – disse ao abrir a porta. – Quer dizer então que não sou o único na cidade?

— Único na cidade?

— Ué? Pensei que você tivesse ido pra praia, como todos os outros.

— “Pensei que tivesse ido para praia” – repetiu de forma irônica. – Faça-me o favor, e perder um evento como esse?

— Evento?

— Não dá tempo de explicar agora, vista-se que lhe conto no caminho.

— Espere aí, Clédisson, você está dizendo que vai ter alguma coisa aqui em Curitiba, em pleno feriado?

— Sim, claro, só você não está sabendo. Na rua só se fala nisso, ouvi dizer que está bombando!

— Poxa, Clédisson, se você tivesse me avisado antes, teria tomado um banho, feito a barba...

— Que nada, não precisa de nada disso. Ponha uma roupa qualquer, vai desarrumado que assim fica legal.

— Ir desarrumado? Que lugar é esse? Já sei, é daqueles meio alternativos, com as pessoas desarrumadas para parecer casual...

— É quase isso...

— Sei como é, todo mundo casual, meio largadão. Aquelas meninas que ficam duas horas se produzindo para parecer que só passaram uma água no rosto antes de sair.

— Praticamente isso. Agora vamos logo porque estamos atrasados!

Ainda tentei ajeitar o cabelo no espelho da portaria, mas logo o Clédisson Craveira me puxou para dentro do carro.

— Acho que antes das 4h a gente chega lá – conferiu num despertador velho dentro do porta-luva.

Só então me dei conta do estado do carro, com sujeira espalhada por todo lado. O modelo Passat 86 não colaborava, mas o que mais chamava atenção eram as coisas espalhadas lá dentro, desde resto de comida a peças de roupa.

— Mas isso aqui está um chiqueiro! – disse segurando um pacote de salgadinho Mandiopã pela metade.

— Não repare não – respondeu tirando um punhado de salgadinho. – Isso faz parte do figurino.

— Figurino? Pombas, isso que é querer parecer casual!

— As outras pessoas vão ver a gente chegando de carro e tem que acreditar – tentou se explicar.

Rapidamente ele estacionou o Passat em meio a uma confusão no centro da cidade. Desci atrás do Clédisson e seguimos até um carro de som. Ele cochichou qualquer coisa para o segurança e subimos.

— Companheiros, vistam isso – disse um homem nos distribuindo bonés vermelhos.

Só então me dei conta de que não estava em nenhuma festa ou algo do gênero, era sim o “Grito dos Excluídos”, manifestação nada festiva que acontece todo 7 de setembro.

— Companheiro, você acha que vai bombar? – o Clédisson perguntou para o senhor ao lado.

— Acho que não. A polícia ainda não apareceu.



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terça-feira, agosto 31, 2004


Coisas estranhas no corredor do prédio

Uma madrugada calma, silenciosa, sem qualquer barulho na rua. O dia, ou melhor, a noite também colaborava, nada de chuva ou vento, sequer uma brisa sussurrando na janela. Era uma noite tranqüila, tranqüila até demais. Não tinha nada interessante acontecendo, nada para escrever, nenhuma idéia na cabeça. É nessas horas que sabemos quem são as pessoas que escrevem de verdade e quais só fingem que escreve. Algo me dizia que nessa história eu ia me dar mal...

De repente, um barulho abrupto surge, um som vindo do corredor do prédio. Para os que não sabem, eu moro num prédio, um prédio com corredor silencioso. Não precisa dizer que aquele barulho em plena madrugada não era normal, coisa boa é que não era.

Muito sorrateiramente me aproximei da porta para identificar aquele som esquisito. Apoiando a orelha na porta, tentei escutar o que se tratava, porém não cheguei a um veredicto. O som era uma espécie de rugido abafado de um animal, um lamento selvagem de criatura bizarra ou algo como o resmungo de uma mulher que se acha gorda só porque comeu uma lata de leite Moça. De qualquer maneira, com medo das três coisas em questão preferi ficar oculto atrás da porta.

O som bizarro persistia, às vezes com breves interrupções, mas ainda podia ser notado pelos ouvidos mais sensíveis e higienizados. Tentei enxergar alguma coisa através do olho-mágico, mas a escuridão predominava. Por mais mágico que seja o olho, nessas ocasiões não tem muito o que fazer. Por outro lado, o barulho começou a aumentar, parecia que a criatura estava se aproximando!

Achava incrível ninguém ter notado o som esquisito se propagando pelo corredor, o prédio permanecia adormecido. Mas espere aí, enquanto nenhuma providência parece ser tomada aquela criatura fica à solta, andando pelos corredores e emitindo sons estranhos. Alguém tem que fazer alguma coisa, alguém tem que defender o prédio, alguém tem que defender os moradores, alguém tem que defender a vizinha do 5o andar!

Calcei o sapato por cima do pijama e ajeitei os óculos. Se é de um homem que vocês precisam, agora não precisa mais.

— Que palhaçada é essa aqui no meu prédio?! – saí do apartamento botando respeito.

— GREEEEER... GREEEEER... – rosnava o animal.

Vendo que a criatura não se abalara, resolvi acender a luz do corredor para enfim ficar cara a cara com o animal funesto (atitude limitada somente aos moradores mais corajosos e valentes do prédio). Quando liguei a luz, nossos olhos se fixaram por um instante eterno. A criatura selvagem foi a primeira a tentar intimidar, rosnando de maneira feraz:

— GREEEEER GREEEEER!!!

— Saia daqui, criatura do mal! Volte para as trevas, profundezas ou seja lá de onde tenha saída! Vá antes que eu comece a me irritar de verdade!

Após o meu colóquio fatídico, a criatura prontamente se esquivou assustada, descendo até os andares inferiores onde perdi de vista. Notei apenas os olhos vermelhos e os trapos velhos que vestia, como se fosse um cidadão normal que sofreu um processo de transformação em animal selvagem. A minha presença deve por fim ter intimidado a criatura, algo inteiramente compreensível.

Mais uma vez, o sossego e tranqüilidade do prédio são restabelecidos graças aos esforços silenciosos de apenas um morador que presa pela paz dos condôminos. Só espero que um dia isso seja levado em consideração na cobrança da taxa de condomínio. Mesmo assim, voltei para casa com o sentimento de dever cumprido.

Logo que tranquei a porta, porém, o interfone tocou. Eu sabia, algo me dizia que nessa história ia me dar mal. Do outro lado da linha estava o porteiro, dizendo de uma queixa de barulho que um morador tinha feito. Somada a tantas outras, acho que vou virar tópico na próxima reunião do condomínio. Prontamente pedi para ligar para o apartamento da criatura.

— Não podia rosnar tão alto, eu não te disse? – falei irritado.

— Mas você também saiu gritando no corredor, queria que eu fizesse o quê? Você disse que tem que “encarnar o personagem”...

— Tá bom, tá bom... – fui dispensando as desculpas. – Agora estou cansado, amanhã a gente conversa.

— Tudo bem, tchau André...

— Tchau, criatura funesta.


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Coisas estranhas no corredor do prédio

Uma madrugada calma, silenciosa, sem qualquer barulho na rua. O dia, ou melhor, a noite também colaborava, nada de chuva ou vento, sequer uma brisa sussurrando na janela. Era uma noite tranqüila, tranqüila até demais. Não tinha nada interessante acontecendo, nada para escrever, nenhuma idéia na cabeça. É nessas horas que sabemos quem são as pessoas que escrevem de verdade e quais só fingem que escreve. Algo me dizia que nessa história eu ia me dar mal...

De repente, um barulho abrupto surge, um som vindo do corredor do prédio. Para os que não sabem, eu moro num prédio, um prédio com corredor silencioso. Não precisa dizer que aquele barulho em plena madrugada não era normal, coisa boa é que não era.

Muito sorrateiramente me aproximei da porta para identificar aquele som esquisito. Apoiando a orelha na porta, tentei escutar o que se tratava, porém não cheguei a um veredicto. O som era uma espécie de rugido abafado de um animal, um lamento selvagem de criatura bizarra ou algo como o resmungo de uma mulher que se acha gorda só porque comeu uma lata de leite Moça. De qualquer maneira, com medo das três coisas em questão preferi ficar oculto atrás da porta.

O som bizarro persistia, às vezes com breves interrupções, mas ainda podia ser notado pelos ouvidos mais sensíveis e higienizados. Tentei enxergar alguma coisa através do olho-mágico, mas a escuridão predominava. Por mais mágico que seja o olho, nessas ocasiões não tem muito o que fazer. Por outro lado, o barulho começou a aumentar, parecia que a criatura estava se aproximando!

Achava incrível ninguém ter notado o som esquisito se propagando pelo corredor, o prédio permanecia adormecido. Mas espere aí, enquanto nenhuma providência parece ser tomada aquela criatura fica à solta, andando pelos corredores e emitindo sons estranhos. Alguém tem que fazer alguma coisa, alguém tem que defender o prédio, alguém tem que defender os moradores, alguém tem que defender a vizinha do 5o andar!

Calcei o sapato por cima do pijama e ajeitei os óculos. Se é de um homem que vocês precisam, agora não precisa mais.

— Que palhaçada é essa aqui no meu prédio?! – saí do apartamento botando respeito.

— GREEEEER... GREEEEER... – rosnava o animal.

Vendo que a criatura não se abalara, resolvi acender a luz do corredor para enfim ficar cara a cara com o animal funesto (atitude limitada somente aos moradores mais corajosos e valentes do prédio). Quando liguei a luz, nossos olhos se fixaram por um instante eterno. A criatura selvagem foi a primeira a tentar intimidar, rosnando de maneira feraz:

— GREEEEER GREEEEER!!!

— Saia daqui, criatura do mal! Volte para as trevas, profundezas ou seja lá de onde tenha saída! Vá antes que eu comece a me irritar de verdade!

Após o meu colóquio fatídico, a criatura prontamente se esquivou assustada, descendo até os andares inferiores onde perdi de vista. Notei apenas os olhos vermelhos e os trapos velhos que vestia, como se fosse um cidadão normal que sofreu um processo de transformação em animal selvagem. A minha presença deve por fim ter intimidado a criatura, algo inteiramente compreensível.

Mais uma vez, o sossego e tranqüilidade do prédio são restabelecidos graças aos esforços silenciosos de apenas um morador que presa pela paz dos condôminos. Só espero que um dia isso seja levado em consideração na cobrança da taxa de condomínio. Mesmo assim, voltei para casa com o sentimento de dever cumprido.

Logo que tranquei a porta, porém, o interfone tocou. Eu sabia, algo me dizia que nessa história ia me dar mal. Do outro lado da linha estava o porteiro, dizendo de uma queixa de barulho que um morador tinha feito. Somada a tantas outras, acho que vou virar tópico na próxima reunião do condomínio. Prontamente pedi para ligar para o apartamento da criatura.

— Não podia rosnar tão alto, eu não te disse? – falei irritado.

— Mas você também saiu gritando no corredor, queria que eu fizesse o quê? Você disse que tem que “encarnar o personagem”...

— Tá bom, tá bom... – fui dispensando as desculpas. – Agora estou cansado, amanhã a gente conversa.

— Tudo bem, tchau André...

— Tchau, criatura funesta.



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terça-feira, agosto 24, 2004


Aporrinhação olímpica

Rapidamente fui obrigado a mudar de canal, estavam novamente falando da Daiane. Nada contra ela, que fique bem claro, mas é que de uns tempos pra cá só se fala disso na televisão. É Daiane pra cá, Daiane pra lá, nunca vi tamanha lavagem cerebral. Eu louco para ter notícias da olimpíada e é só isso que passa.

Falando nisso, olimpíada é um negócio legal, não acha? O mundo todo reunido para uma disputa saudável e pacífica. Nada de guerra ou conflito, os países todos se reúnem para celebrar a irmandade e fraternidade dos povos. Algo só comparável ao concurso de Miss Universo, só que sem o desfile de maiôs. De qualquer forma, ficar em casa até tarde assistindo os jogos é um grande programa, pelo menos de quatro em quatro anos.

Pessoalmente, eu pertenço àquele grupo de pessoas que assiste qualquer coisa referente à Olimpíada, desde os jogos decisivos e mais importantes até os esportes menos conhecidos. Para mim, tendo dois competidores de países diferentes pode ser até disputa de par ou impar que eu assisto. Se um deles for argentino, então, já saio gritando e xingando o juiz.

Dias atrás me flagrei assistindo outro daqueles esportes exóticos. A olimpíada é um troço legal também por isso, a gente tem contato com esportes que normalmente não têm espaço na televisão e nem público cativo. Ainda mais nós aqui no Brasil, que só temos contato com futebol e mais dois ou três esportes. As pessoas deviam saber que existem outras modalidades, algumas até bem excêntricos.

Era em um desses programas especiais de Atenas, eles começaram a mostrar o resumo dos jogos e dar os resultados. Foi então que dois esportes desconhecidos me chamaram atenção. Observando atentamente a finalidade do jogo e buscando entender o objetivo de tudo aquilo, tentei imaginar se alguma dessas modalidades teria alguma chance de se popularizar no Brasil. Por fim conclui que as duas modalidades nunca se difundiriam em nosso território. Por mais aberto que seja o povo brasileiro as pessoas jamais se animariam a praticar esportes tão confusos e esquisitos. A começar pelos nomes sem sentido: badmington e vôlei.

Foi só começarem a falar dos esportes femininos que a conversa desandou a falar da tal da Daiane. Que raiva, parece marcação, mesmo mudando de canal continua esse blábláblá de Daiane. Estão falando que ela estava com uma bruta dor no joelho, coitada. Mas que diabos eu tenho a ver com isso?!

Tanta coisa acontecendo no Brasil e no Mundo, coisas mais importantes. A invasão do Iraque, os conflitos na Palestina, o cara que prendeu o nariz numa torradeira, coisas sérias e urgentes que perdem espaço nos telejornais por causa do joelhinho da Daiane. Eu, por exemplo, há uns tempos atrás tive um problema série de olho de peixe no calcanhar, me pergunta se apareceu alguém da imprensa para perguntar como é que eu tava?

Mas deixa disso, vou assistir aqui as olimpíadas para esfriar a cabeça. É bom assistir enquanto há tempo, acho que os jogos só devem durar mais uma semana, os próximos em Pequim só daqui quatro anos. Quatro anos, um bocado de tempo. Tá certo que Pequim é longo, mas em quatro anos daria para chegar lá, nem precisava ter muita pressa. Dava até para montar uma excursão, “Curitiba – Pequim” de ônibus, pagando em 48X. A gente chegaria a tempo de assistir a cerimônia de abertura, com Jacques Chan carregando a tocha olímpica, posso até imaginar.

Me distraio um segundo e quando volto vejo que estão entrevistando um médico, especialista em joelho. Ele está falando do problema do joelho da Daiane, não acredito que vai começar tudo de novo... A repórter começa a falar que foi graças ao joelho bichado que a Daiane não conseguiu a medalha. Não me agüentei e saí aos berros com a TV.

— Medalha? E desde quando a Lady Di pratica algum esporte?!

O televisor não respondeu e eu continuo a minha bronca.

— Além do mais, mesmo que ela ganhasse alguma coisa seria medalha para a Grã-Bretanha! Ela é princesa da Inglaterra, sabia? Da Inglaterra!

Depois de descarregar a minha revolta, me senti melhor. Mas que droga, nem morrendo essa Lady Di dá descanso pra gente!



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terça-feira, agosto 10, 2004


Folha dupla, sabor pêssego

Sei que pode parecer besteira, uma preocupação boba, mas tenho que confessar que em determinadas ocasiões passo um bom tempo pensando nesse tipo de coisa. Também sei que esse assunto beira a mediocridade, porém, acredito que insistindo com esse questionamento talvez consiga um dia obter uma resposta, uma explicação que possa calar essa pergunta recorrente dos momentos solitários. A dúvida é a seguinte: por que será que inventaram o papel higiênico sabor pêssego?

Besteira, não é? Eu sei, mesmo assim garanto que vocês já refletiram sobre esse tema, nem que tenha sido numa rápida passada no supermercado ou não tão rápida visita ao toalete. O papel higiênico sabor pêssego deve estar entre as invenções mais inusitadas dos últimos tempos. Curiosa ou não, é indiscutível o sucesso dessa variedade alaranjada do tradicional objeto branco.

Por outro lado, a reação imediata que tive à novidade foi pensar por que foi que escolheram o pêssego? Hoje acredito que existam outros sabores, mas por que pensaram em fazer primeiro o pêssego? Diante dessa constatação, o lado patriótico falou mais alto. Pensava que num país com uma riqueza tão exuberante de frutas e sabores, a escolha do pêssego tinha sido equivocada, provavelmente influência dos papéis higiênicos yankees. Aquele tipo de coisa não podia acontecer, estava na hora de criarmos nossos próprios sabores de papéis higiênicos. Fora ALCA, fora FMI!

Sobre o sabor pêssego, é importante lembrar que as qualidades desse novo produto não vão muito além da coloração alternativa. Embora a embalagem insinue a existência de um sabor correspondente à fruta em questão, essa característica não se revela na prática. O papel higiênico sabor pêssego não possui qualquer gosto da fruta. Pelo menos eu nunca senti.

Importante ressaltar também que ingestão dessa variedade alaranjada não resulta na aquisição nutricional da fruta. Isto é, a pessoa que, por ventura, adicionar papel higiênico sabor pêssego à dieta acreditando fazer uso de uma fonte rica em vitamina A, B1, B2, C, proteínas, gorduras e cálcio não irá alcançar o resultado esperado. O pêssego é um grande estimulante digestivo, laxativo e diurético, é verdade, porém, quando ingerido em seu estado natural, não sob a forma de papel.

Sem querer desfazer o mito do papel alaranjado, não quero que pensem que sou contrário a sua utilização. Sou um confesso apreciador da fruta, quando estamos na época do pêssego prestigio comprando quilos e mais quilos. Nesta época do ano, porém, não encontramos o pêssego com fartura, o papel higiênico, por outro lado, ainda abunda (sem trocadilho) pelos supermercados da vida, o que me leva a outro questionamento: Se não estamos na época da colheita de pêssego, mas vemos muito papel sabor pêssego. Como eles podem ter feito papel higiênico sabor pêssego sem pêssego?

Apesar dessa pergunta ser igualmente boba e infantil, temo que estejam utilizando frutos velhos, de baixa qualidade ou até estragados como matéria-prima para a confecção do papel higiênico. Além dos problemas recorrentes à ingestão de frutos apodrecidos, seria algo muito revoltante se descobríssemos que estamos utilizando com um produto estragado e passado, como um pêssego mofado.

A solução para isso tudo? Detesto ficar batendo na mesma tecla, mas vou ser obrigado a repetir o que disse anteriormente, o ideal seria a substituição por elementos da flora brasileira, que são encontrados durante o ano todo.

Existem tantas frutas diferentes em nosso território, daria para fazer uma linha completa de produtos, um sabor para cada dia. Não falo das frutas tradicionais, como maçã, pêra ou laranja, me refiro aos frutos 100% brasileiros. Cajá na terça-feira, umbu na quarta, quinta-feira açaí, tamarindo na sexta. Final de semana estava liberado, pode até pêssego. Devaneio bobo, eu sei. Mas quem sabe um dia não estaremos usando papel higiênico da marca Cupuaçu? Daí, não digam que eu não avisei.



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terça-feira, agosto 03, 2004


Um porre de esperança

Nunca uma visita de Clédisson Craveira me foi tão aguardada, estava realmente feliz em encontrar o velho amigo. Ele já estava sumido há um bom tempo, segundo algumas pessoas tirando umas férias prolongadas, foragido da justiça para outras. Independente disso, eu sabia que a vinda do Clédisson me faria bem.

A bem da verdade é que não estava passando por um bom momento. Sucessivos insucessos no campo profissional e afetivo tinham abalado o meu entusiasmo. Vocês sabem como é, nos acostumamos com o sobe e desce, os altos e baixos da vida, porém, quando nos deparamos com o desce e desce, os baixos e baixos, a coisa fica complicada. Por sorte, soube que o Clédisson estava de volta à cidade e nada melhor do que contar com os amigos nessas horas.

— Manda subir – respondi ao porteiro quando anunciou a chegada do amigo.

Momentos depois, a campainha soou repetidamente, evidência da chegada do cara. Sei disso porque ele sempre teve essa mania desde quando éramos crianças, ficava azucrinando com a campainha achando que para quem está ouvindo também é engraçado.

— Clédisson Craveira, finalmente dando as caras! – disse ao abrir a porta.

— Quem está vivo sempre aparece.

— Está certo... agora, Clédisson, poderia parar com isso – me referi a campainha que ele insistia em tocar até agora.

— Eh eh eh... essa foi engraçada, né? – disse largando o botão e me cumprimentando.

Convidando-o a entrar, perguntei sobre o motivo do tão repentino desaparecimento. Ele foi logo desenrolando uma de suas histórias confusas, sem pé nem cabeça. Eu apenas concordava fingindo levar a sério, mesmo sabendo que metade era lorota, metade cascata. Mas quem se importava, se quisesse ouvir verdades não o teria chamado.

— Mas estou sabendo de umas coisas que estão me deixando chateado – ele disse interrompendo uma das histórias. – Estou sabendo que você anda numa maré de azar.

— É... coisa pouca... as coisas não estão dando muito certo... – desconversei.

— Tu tá na pior, não é? Eu sei disso.

— Não gostaria de falar sobre isso, Clédisson... – tentei me esquivando.

— Você não precisa falar, pode deixar que eu falo.

— Não, espere aí...

— Continua sem emprego, sem dinheiro, sem mulher...

— Poxa... obrigado, não esqueceu de nada?

— Ah sim, tem outra coisa, você está quase sem cabelo. Tá ficando careca, hein?

Como eu estava dizendo, esse Clédisson Craveira não vale nada, maldita hora que resolveu voltar para essa droga de cidade. Eu deveria chamar a polícia para enxotar esse...

— De qualquer forma, meu amigo – pôs a mão no meu ombro em tom tranqüilizador. – Uma coisa eu tenho que lhe dizer sobre esse momento difícil que você está passando.

— Eu sei, isso tudo vai passar...

— Não, a tendência é só piorar.

— Como é!?

— Piorar, você sabe, com o tempo as coisas só tendem a piorar de vez, mas não precisa se preocupar...

— Como assim "não precisa se preocupar"?

— Não precisa se preocupar com isso. Para enfrentar um momento ruim como esse, você tem que ter somente uma coisa.

— Uma coisa?

— Sim, basta ter uma coisa para enfrentar tudo isso.

— Você diz... esperança? Tem que ter esperança?

— Esperança? É, pode ser... mas eu estava me referindo a isso – disse tirando uma garrafa de vinho da sacola do supermercado.

Quando ele esvaziou a sacola não pude conter a risada. E pensar que por um instante eu achei que o Clédisson Craveira fosse proferir palavras sábias e tranqüilizadoras, desejando paz nesse momento tão ruim, dizendo que dias melhores virão, coisa e tal. Que nada, eu já devia ter me acostumado com a maneira rústica dele enfrentar os infortúnios da vida, esvaziando uma garrafa de alguma bebida, de preferência bem barata.

Quando dei por mim, estávamos rindo de nós mesmos disputando no par ou impar a última dose do vinho. Naquele dia, o Clédisson achava que tinha trazido apenas uma garrafa de vinho de barato, porém, aposto que ele nem percebeu que me deu um porre de esperança.


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terça-feira, julho 27, 2004


Planejando encontros casuais

— E qual o número, senhor? – perguntou a vendedora.

— 40.

— 40?

— Aliás, 40 não, 41 fica melhor – corrigi a tempo. – Meu pé é um pouco largo, o 40 vai ficar um pouco apertado.

É engraçado ver como a simples rotina pode variar de pessoa para pessoa, como alguns vivem num ritmo mais tranqüilo, sossegado e outras estão sempre no pique, cheio de afazeres e compromissos. É nesse segundo tipo de pessoas que encaixo a minha amiga Fernanda, no grupo das pessoas hiper-ativas que faz o dia render um pouco mais do que as 24 horas normais.

Embora inveje o potencial e a dinâmica delas, comecei a notar uma certa dificuldade em conviver com essas pessoas graças a Fernanda. Descobri o quanto é difícil conseguir encontrar as pessoas hiper-ativas para um compromisso casual, uma conversa simples ou algo do gênero. Elas nunca têm tempo, nunca. Pelo menos nunca quando nós queremos encontrá-las.

— Poxa, o senhor vai ter que me desculpar, mas não temos o número 41 – desculpou-se a vendedora.

— Sendo assim, pode ser o 40 mesmo. Depois de um tempo eles dizem que alarga...

Percebi isso quando tive a feliz idéia de chamar a Fernanda para o cinema. Tudo bem que isso não é o que se pode chamar de compromisso casual ou conversa simples, mesmo assim o problema de agenda sempre impediu a realização desse programa. O máximo que conseguia dela eram pequenas janelas de vinte minutos intercalados no meio da semana. Sabia que desse jeito ficaria difícil ver algum filme com ela, mesmo assim tive vontade de propor que fossemos assistir pelo menos os traillers.

— Puxa vida, senhor, o 40 também não tem... – disse toda penalizada.

— 40 também não?

Como sabia que não se animaria em sessões de traillers, passei para um plano mais radical. Na verdade não foi uma idéia minha, essa prática já é feito há algum tempo, tive apenas que fazer pequenas adaptações. A coisa toda se baseava nessa onda de seqüestros relâmpago, quando se seqüestra a pessoa e mantém em cativeiro por um curto período de tempo até que se consiga dinheiro. A minha idéia era quase assim, eu iria seqüestrar a Fernanda e a manteria em cativeiro em um curto período de tempo (correspondente a uma sessão). Obviamente, a prática não teria o intuito de recolher dinheiro, só partiria para esse objetivo se ela quisesse uma porção de pipoca.

— Se o senhor quiser, eu posso deixar encomendado para o seu número, certo?

— Se for o único jeito... – disse aceitando a proposta.

A coisa piorou ainda mais quando as obrigações profissionais passaram a enviar a Fernanda para outras localidades, outras cidades e até outro estado. Quanto a mim, você pode imaginar o estado de desespero que fiquei. Encontrar a minha amiga tinha se tornado uma tarefa das mais complicadas.

Analisando a agenda da moça, comecei a pensar em novas formas de realizar possíveis encontros, tendo em vista que o bom e velho cinema não estava surtindo efeito. O único jeito seria me encaixando na sua rotina diária para que um encontro casual fosse casualmente planejado.

Em horário comercial ela trabalha, pelo menos por enquanto porque se conseguisse que fosse despedida teriam muito tempo para encontrá-la. Eu poderia fazer uma visita levando flores e jornal de Classificados Empregos, chamaria isso de "Romantismo em Tempos Bicudos".

Após o horário de expediente, ela tem os compromissos ligando à dança, seja ensinando sapateado ou tendo aulas de ballet. Sobre isso, não posso fazer muito, minha habilidade no que diz respeito à dança é praticamente nula. Além disso, não fico bem de colan e meia-calça.

— Talvez demore algumas semanas para chegar o número 41, tudo bem?

— Tudo bem.

— O senhor tem que entender que não é todo dia que procuram uma sapatilha de ponta número 41...

De qualquer forma, não vale à pena ficar atrelado a conceitos velhos e antigos. O machismo já é coisa do passado. Além do mais, vai que eu começo a gostar da coisa?

— A meia-calça, o senhor vai querer de que cor?


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terça-feira, julho 20, 2004


Numa dessas manhãs de inverno

O carro dá uma freada brusca e pára alguns metros depois de mim. A porta se abre e dou de cara com a vizinha do quinto andar. A supervizinha do quinto andar.

— Por favor, me desculpe, eu sujei você, não foi?

Antes que pudesse balbuciar qualquer coisa, ela puxou um lenço da bolsa e passou carinhosamente no meu rosto.

— Venha comigo – disse me conduzindo ao seu carro. – O mínimo que posso fazer agora é te dar uma carona.

Antes de fechar a porta do carro, ainda vi o reflexo da minha cara estampada no vidro, era uma alegria mal disfarçada, um sorriso no canto da boca. Finalmente eu estava conhecendo a vizinha do quinto andar. E graças a uma situação tão inusitada, aquilo era bom demais...

BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ!!

Parecia armação...

BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ!!

Como se fosse um sonho...

BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ- BÉÉ!!

Pare com isso!! Dou um tapa no despertador para desligar aquele barulho insuportável. Abro o olho e me vejo deitado na cama, estava acordando naquele instante. Acordando não, isso eu só farei daqui uns quinze minutos. Instantaneamente sou tomado por um frio que invade as cobertas, bem coisa dessa época do ano.

Levantando da cama, os compromissos voltam à mente jogando os sonhos para um baú lacrado. Como de costume, tomo um banho bem quente para despertar completamente. Atitude impensada, se soubesse do frio dessa manhã teria adiado temporariamente a higiene pessoal, talvez pra daqui umas oito luas. Olho para a janela e um baita pé-d’água chama atenção. Porcaria de dia.

Já não bastasse o frio, a chuva também marcava presença no inverno curitibano. Porcaria de inverno. E pensar que na TV só se falava em aquecimento global, efeito estufa... tudo balela! Uma baita propaganda enganosa, isso sim. Essa história de desmatamento, poluição, camada de ozônio, nada disso adiantou, o inverno continua um frio desgraçado.

Não tem jeito, compromisso é compromisso, trabalhar no inverno ninguém gosta, mas alguém tem que fazer. Verdade, eu também acho uma desumanidade ter que trabalhar em meio a condições climáticas tão adversas. Arriscar a saúde com essa ventania, a integridade física com o risco de tomar uma friagem, acabar adoecendo e morrer estropiado, com o nariz escorrendo. As autoridades deviam proibir qualquer ofício na época do inverno, voltando ao trabalho somente no verão, que é uma época de clima mais favorável. Mas pensando bem, trabalhar no verão também é muito arriscado. O cidadão naquele calor acaba tomando uma insolação, fica todo queimado e conseqüentemente desidratado, daí resolve tomar um picolé pra refrescar, acaba adoecendo e morre estropiado, com o nariz escorrendo.

Diazinho infernal, isso sim. Pior é pensar no que ainda vem pela frente, me refiro ao ônibus em dia de frio e chuva. Acho que vai ser a primeira vez que vou ficar feliz se estiver lotado. Um pouco de calor humano não iria mal. Mas não era hora de pensar nisso, rapidamente dou um golão no copo de leite já finalizando o café da manhã. Com um movimento, apanho a mochila e saio. É agora ou nunca.

De frente para espelho, ajeito o cabelo pensando no dia horrível que faz hoje: um frio de lascar com uma chuvinha besta. E pensar que quando o elevador chegar, o porteiro ainda vai me dizer "Bom dia!". Onde já se viu, "Bom dia"? Só se for para ele, pra mim está mais para "Ruim dia".

O elevador chega e desço parecendo um boneco de neve para enfrentar o tempo. Fui chegando perto do porteiro com uma resposta na ponta da língua para o tradicional "Bom Dia!", porém, eu passo quase sem ser notado. Abro a porta de saída sem entender o silêncio, me viro para trás e vejo o porteiro olhando o nada.

— Bom dia! – digo puxando assunto.

Ele responde balançando a cabeça, pensando consigo "Bom dia?".

A porta se fecha e ganho a rua. Logo na primeira esquina, sou surpreendido com um carro que passa em alta velocidade espirando a água de uma possa. Não me sujo tanto graças a uma esquiva estilo Matrix, mesmo assim fico com o rosto todo sujo. O que mais pode acontecer num dia como hoje?

O carro dá uma freada brusca e pára alguns metros depois de mim. A porta se abre e dou de cara com a vizinha do quinto andar. A supervizinha do quinto andar.



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terça-feira, julho 13, 2004


“Pacote Risada por apenas R$ 250”

Todo dia era a mesma coisa, Estevão se levantava cedo e era o primeiro a chegar na repartição. O primeiro a chegar e o último a sair, pois o chefe sempre arranjava alguma coisa extra só para ele. Tamanha preferência era devido a sua inquestionável eficiência, o que lhe valia uma carga muito maior de trabalho do que os colegas, o que não implicava em benefícios. Aliás, a única coisa que conseguiu ganhar com isso tudo foi a fama de puxa-saco, que circulava na hora do cafezinho.

— E daí, tô pouco me lixando! – repetia para si mesmo.

Mas Estevão não era de ferro, também é um ser humano com vísceras, caspa, joanetes e também sentimentos. Por mais que agüentasse bravamente toda hostilidade, por dentro se sentia mal, triste. Ele queria muito desabafar, relaxar uma vez, nem que fosse só uma. Uma risada, ele queria rir, não fazia isso há tanto tempo que até tinha se esquecido como se fazia isso.

Outro dia, na frente do espelho, ele até tentou rir. Escreveu numa folha e ficou lendo repetidamente “rá rá rá rá”. Não ficou satisfeito da primeira vez, tentou outra também sem sucesso. Percebeu que não era tão simples assim, a pessoa tem que fazer isso só que sorrindo. Nossa, daí era complicado! Sorrir é um troço muito chato, ter que ficar com a musculatura da boca distendida o tempo todo. Em pouco tempo começava a doer tudo, teve que parar com medo de dar câimbra.

Sentou-se novamente na poltrona e ficou matutando como poderia rir. Estalou os dedos e logo se levantou, Estevão tinha tido uma idéia. Rapidamente foi até à escrivaninha e remexeu tudo atrás de alguma coisa, atrás de um durex. Quando encontrou, se dirigiu ao espelho do banheiro para ver se daria certo. Com a boca, cortou dois pedacinhos e colou um em cada bochecha, puxando os cantos da boca e simulando um sorriso. Mas aquilo não tinha graça nenhuma.

No dia seguinte, antes que voltasse para o trabalho com a cara de sempre, deu de cara com os dizeres de um cartaz colado num poste: “Pacote Risada por apenas R$ 250”. Como é? Sem entender ele leu novamente “Pacote Risada por apenas R$ 250”. Como pode um negócio desse, ele pensou. Onde já se viu?

Mas aquela história tinha que ser passada a limpo. Como embaixo tinha o endereço, fez questão de averiguar o anúncio. “Pacote Risada”, ele nunca tinha ouvido falar numa coisa dessas. Para não ir desprevenido, foi ao caixa eletrônico e sacou R$ 250 no ato. Como ele ia dar conta das contas do mês ele não sabia, mas se desse certo ele ficaria rindo à-toa.

Naquele dia ele saiu mais cedo da repartição, para a estranheza de todos. Seguindo as indicações de um conhecido, ele pegou o alimentador Cafundó do Judas para chegar ao endereço. Depois de muito viajar, ele desceu e teve que andar mais um bom tanto. Já estava pra lá de tarde quando chegou no local exato do cartaz, uma casinha velha de madeira. Para tirar logo qualquer dúvida, começou a bater palmas para chamar atenção.

— Pois não? – disse uma senhora saída da casa.

— O-oi, eu vi um cartaz na rua e gostaria de saber mais do Pacote Risada.

— Pacote Risada? O senhor vai querer quantos?

— Então existe mesmo?! Poxa, então eu quero um pra mim!

— Vai querer um? Vai custar R$ 400.

— Como é? – disse sem entender. – Mas no cartaz dizia R$ 250!

— R$ 250? Mas não custa R$ 250 não. Isso foi antes do aumento.

— Aumento? Poxa, mas o preço quase dobrou!

— Sinto muito, moço – se despediu quase fechando a porta.

— Espere, espere, não tem problema. Eu não tenho todo esse dinheiro no momento, mas, por favor, você não faz por R$ 250? Pode ser umas risadas usadas, meio velhas...

— Por R$ 250 eu tenho um Pacote Sorriso, se o senhor quiser...

— Pacote Sorriso? Então tudo bem, pode ser um Pacote Sorriso...

Estevão fez o negócio lá mesmo, R$ 250 por um Pacote Sorriso. Ainda na rua ele desembrulhou para ver do que se tratava. Estranhou o negócio, apalpou umas três vezes e até cheirou, mas acabou vestindo. Quando olhou para o espelho, viu sua imagem refletida com um magnífico sorriso, brilhante e reluzente, era um sorriso de comercial de creme dental. Naquele dia, ele voltou feliz da vida. Era quase meia-noite quando Estevão chegou em casa com o sorriso de orelha a orelha. Mas antes mesmo de tirar os sapatos, ele se dirigiu até o espelho do banheiro, desdobrou a folha e começou a recitar: “Rá rá rá rá!”.



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terça-feira, julho 06, 2004


Falso Diagnóstico

Não sei se vocês sabem, mas de uns tempos pra cá eu estava preocupado com a minha situação capilar. Cabelo, você sabe, aquele negócio que nasce no topo da cabeça das pessoas. Estava preocupado porque achava que os meus fios estavam caindo, saltando fora, a pior coisa que pode acontecer com alguém jovem. Mal sabia eu que o pior mesmo ainda estava por vir.

De frente para o espelho, não me cansava de analisar a cabeleira. Tudo bem que não estavam lá em grande número, de qualquer forma achava que ainda atingiam o quorum mínimo. Mesmo assim continuava vigilante e atento à presença dos fios, fiscalizando o comparecimento de cada um. Para a realização dessa tarefa, aprendi que vendo nas últimas fotografias eu tinha um bom parâmetro.

Parece idiota, mas somente quando olhava para minhas próprias fotos tinha a impressão exata da saúde dos folículos. Observando entre uma foto e outra, via sempre o cabelo da mesma forma: não muito volumoso e desarrumado, isto é, normal. Me aliviava cada vez que via isso, porém, surpresa maior eu tive depois.

Se por um lado os fios ainda estavam da mesma forma, quando minha atenção se virou para o resto da cabeça, comecei a notar algo diferente. Estava tudo grande, maior do que de costume. A minha cabeça parecia maior, maior do que o de costume. Sem acreditar, pisquei os olhos algumas vezes, mas aquela imagem continuava lá. Meu Deus do céu, que diabos está acontecendo!?

Espere aí, aquilo ali não pode ser verdade. Procurei em outras fotos e o mesmo aparecia. Via que nas fotos antigas a minha cabeça estava normal, nas recentes, porém, crescia igual a uma melancia. A testa estava muito grande, grande e descoberta. O topo da cabeça, do crânio, também estava sem telhado. Coitado do cabelo, ele estava como sempre, só que diante de uma cabeça em expansão ele ficou tímido.

Minha cabeça estava definitivamente muito grande, era só questão de tempo para começarem a notar. As pessoas vão rir, os cães vão latir e as crianças chorar. Talvez eu devesse escondê-la, com um boné ou um toca. Entretanto, o processo já estava muito adiantado, teria que achar algo maior, talvez uma sombrinha ou um toldo.

Uma desgraça se abatera sobre mim, mas como tamanha anormalidade poderia ter acontecido? Deve haver uma razão, a cabeça das pessoas não fica crescendo assim, de uma hora para outra. A ciência pode ter uma explicação, não posso ser o único caso dessa desgraça. Desesperado, comecei a folhear um livro de medicina aqui de casa, me baseando exclusivamente pelas figuras bizarras. Tinha que ter alguma fotografia de uma cabeça gigante, tipo que... opa!

Era uma foto em preto e branco bem velha, digna de um filme de terror, uma criancinha cabeçuda. Em baixo, na legenda, se lia “hidrocefalia”. Meu Deus, então é isso que tenho!!!

Minha cabeça ainda não estava naquele estado, ainda bem, eu devia estar apenas no início da manifestação. Li apenas uma rápida descrição do caso e fechei aquele livro show dos horrores, tinha que correr atrás de tratamento antes que fosse tarde demais. Só guardei que meu problema se tratava de um acúmulo de líquido “cefalorraquidiano”, seja lá o que isso seja.

Maldito líquido cefaloiraquiano, como posso ter acumulado esse negócio sem nunca ter bebido esse troço? Deve ser uma dessas porcarias que põem nos refrigerantes, agora estou com a cabeça crescendo por causa disso. Mas aquilo não podia ficar assim, do mesmo que ingeri esse negócio, tinha que eliminá-lo. Antes que minha cabeça não passasse pela porta, corri até a farmácia para resolver isso.

— Posso ajudá-lo? – a moça veio me atender.

— Estou precisando... estou precisando eliminar um líquido cefaloiraquiano.

— Como disse?

— Os malditos refrigerantes. Bebi demais e agora estou com muito líquido.

— Muito líquido... – repetiu sem entender.

— Você sabe... – disse apontando para a cabeça. – Você já deve ter percebido o meu probleminha...

— “Probleminha”? Ah sim, esse probleminha – apontou para minha cabeça quando entendeu. – Você está com sorte, recebemos ontem mesmo um produto novo, ideal para problemas como o seu.

— Poxa, que bom! Qualquer coisa que faça minha cabeça parar de...

— Está bem aqui – me interromper pondo um frasco escuro em cima do balão.

Peguei o produto intrigado e li no rótulo:

“Mega Super Hair: adeus à careca!”.


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terça-feira, junho 29, 2004


Para pensar na fila

— Opa, opa, opa! – exclamou em bom tom o que todo mundo queria dizer. – Se quiser entrar tem que ser lá no final da fila!

A iniciativa deu resultado, os outros apoiaram a medida e reforçaram o protesto.

— A fila começa lá atrás.

— Isso aí, já pro final!

O espertinho em questão ainda ensaiou uma explicação, dizendo que a sua avó estava guardando lugar pra ele, mas não adiantou, o rapaz teve que dar meia volta e sair da fila. Aos que restaram, ficou a revolta.

— Tremenda falta de educação, furar a fila – alguém lembrou.

— Falta respeito ao próximo – a senhora falou de forma ecumênica.

— Uma sem-vergonhice! – a baixinha disparou.

Todos concordaram que furar fila era um tremendo desrespeito. Como o rapaz infrator já tinha sido retirado, enxotaram também a avó dele. Onde já se viu, ficar tentando furar a fila, pelo jeito a vovó não soube dar educação para o neto.

Os nervos estavam à flor da pele. Naquele momento, ai de quem tentasse levar vantagem. Também pudera, depois de mais de quatro horas na fila do INSS, qualquer um perde a paciência em um passe de mágica. O pessoal já tinha passado por todas as fases da espera. Começaram aguardando pacientemente, em silêncio e pensando na vida. Em seguida, as pessoas foram puxando assunto, falando do final da novela pra fazer o tempo passar. Só depois começaram a reclamam da fila, em forma de piada. Com o tempo, as brincadeiras foram ganhando um tom mais sério, se estendendo a críticas ao governo federal. Do Lula para a ALCA foi um pulo. Falou em ALCA é falar do Bush, o que leva a Israel, passando pela Palestina...

— Opa, opa, opa! – o mesmo sujeito da primeira vez dá o alarme, o que mobiliza os fuzileiros.

— A fila começa lá atrás!

— Se quiser entrar tem que ser no final.

— Não adianta tentar enganar.

O espertalhão ainda resmungou qualquer coisa, mas não adiantou. Furar a fila nem pensar, podia ser velhinha octogenária ou gestante dando a luz. Aliás, nem se fosse gestante octogenária que não iam deixar barato.

— Olha lá, olha lá! – sussurrou um deles.

As atenções todas se viraram mais adiante, flagrando um rapaz recebendo dinheiro de uma mulher. Estava vendendo o lugar na fila, o desgraçado. Não demorou muito um senhor mais voluntarioso tomou as dores e foi tirar satisfação com os dois. Ele chegou nervoso gesticulando enquanto lá atrás os outros vibravam com a atitude. Aos poucos se acalmou e começou a conversar com o rapaz e a mulher. Pouco depois o garoto voltou à fila e o senhor voluntarioso saiu contando dinheiro. Ele ofereceu um preço mais baixo e conseguiu levar a freguesa. Muitas vezes a livre concorrência é um troço revoltante.

De qualquer forma, quem poderia falar alguma coisa? As pessoas vêm pra cá tentando arranjar um dinheiro, seja pensão, seguro desemprego, aposentadoria ou auxílio-qualquer-coisa. Vender o lugar na fila é só uma mais forma alternativa de conseguir um benefício. Se o camarada viesse aqui todo dia poderia tirar o sustento. Profissão: Enfrentador de fila. Do jeito que tem filas nesse mundo, daria para atuar em diversos ramos, de cultura a esportes. Abrir uma empresa seria o próximo passo, funcionários treinados e especializados em enfrentar fila sem sentir dor nas pernas ou reclamar da demora. Pensando bem, acho que só eu não me dei conta de que isso já existe...

Uma euforia coletiva se instalou lá na frente, a agência do INSS estava finalmente abrindo. Era hora de recolher as cobertas e cadeiras de praia, lá dentro o negócio prometia ser bem rápido. Rápido, isso seria mesmo, mas não ia ser o fim dessa história. Hoje só deu pra pegar a senha, atendimento mesmo só no outro dia. Isso se não tiver greve...



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terça-feira, junho 15, 2004


Pequenos detalhes que fazem diferença

— Tudo bem, meu amor, tudo bem... – disse passando a mão carinhosamente na franja de Eugênia. – Pode escolher a cor que você quiser.

Mais uma vez Afrânio evitava uma discussão fazendo os desejos da esposa. Começo de casamento é assim mesmo, o marido atende qualquer pedido, qualquer capricho da noiva. Mas esse era o jeito normal de Afrânio, calmo e pacato, do tipo que faz qualquer negócio para evitar um briga, ainda mais com Eugênia. Topou até pintar a casa de laranja, a última idéia da moça.

Tá certo que a moradia andava precisando de umas cores, porém, nem tantas assim. Cor de laranja era demais para ele, um cara tão discreto. “O que a vizinhança iria pensar?”, conversava com o travesseiro. Mesmo assim não teve jeito, em poucos dias o laranja podia ser visto nas paredes e muros, do piso ao teto. Por sorte a casa era tão pequena que não precisou gastar muito, poucas latas deram conta do recado. O resultado podia ser avistado de longe.

Como Afrânio previu, a vizinhança caiu de pau. Gente criticando e falando mal era o que mais tinha. Até gente que nem viu o resultado final apareceu só pra falar mal. Mesmo assim Eugênia ficou feliz, uma casa cor de laranja sempre foi seu maior sonho. Passou-se um tempo, quando a vizinhança cansou de pegar no pé deles, a cor laranja começou a proliferar na rua. Uma casa aqui, outra lá, tudo muito espontâneo e sem fazer alarde. As donas de casa passaram a exigir de seus maridos uma pintura alaranjada em seu lar.

O subúrbio começou a ficar diferente e finalmente a imprensa se deu conta disso. A televisão, que só visitava o bairro no noticiário policial, fez uma matéria destacando a cor laranja dos barracos. A essas alturas, Eugênia podia jurar que eles tinham sido os primeiros que ninguém acreditaria. Nas lojas de tintas, as cores laranjadas entraram em falta, as listas de espera aumentavam e as fábricas tiveram que dar horas extras para dar conta dos pedidos. Mais do que nunca, estar na moda era estar laranja.

Em Washington, o secretário de Defesa dos Estados Unidos chegou atordoado ao gabinete do presidente Bush. Ele tinha revelações bombásticas, só visíveis em fotos de satélite. No oriente médio estava tudo normal, judeus e palestinos se matando, homens bombas pipocando aos milhares, mas a grande ameaça não estava lá, estava na América Latina.

As fotos eram bastante claras, um lugar antes residencial estava assumindo uma estranha coloração alaranjada, “Alaranjado do Mal”, como passaram a chamar. Obviamente aquilo não poderia ficar assim, imediatamente Bush pediu explicações ao governo brasileiro, mas sem querer acabou mandando a mensagem por engano a Buenos Aires.

Como não conseguiu uma explicação sobre o “Alaranjado do Mal”, o governo americano resolveu tomar uma atitude por conta própria, isto é, cancelou todas importações de laranja provenientes do Brasil. Além disso, resolveu bombardear a Síria só por cautela.

Por aqui, o incidente das laranjas só serviu para deixar a coisa ainda mais preta. Protestos e passeatas se seguiram por todo mês, com direito a manifestantes apedrejando a embaixada americana com laranjas pêra. No governo, os desempregados da fruticultura obrigaram o presidente Lula voltar à China para divulgar o suco de laranja. Os produtores tentavam convencer que rolinho primavera e suco de laranja era uma combinação dos deuses, seja Deus ou Buda.

As investidas deram certo, na China o suco de laranja virou sensação. Navios carregados de laranja deixavam o porto enquanto outros de bandeira chinesa chegavam carregados de muamba. Nunca se viu tanta muamba circulando em terras brasileiras. Era tanta que as lojas 1,99 tiveram que abaixar o preço e passaram a se chamar Loja 1,92. Os falsificados dominaram o mercado.

Em Washington, o secretário de Defesa voltou ao gabinete de Bush. As empresas americanas estavam quebrando por causa dos falsificados provenientes do Brasil. A rota China-Brasil-EUA de muamba chegou ao conhecimento do Tio Sam. Rapidamente, o senhor aposentado ligou para o governo e comunicou tudo. As relações entre Brasil e Estados Unidos, já desgastadas pelo incidente das laranjas, ficaram ainda piores. Os americanos passaram a suspeitar da presença de armas de destruição em massa em terras brasileiras.

— Roxo? Mas logo roxo? – pergunto Afrânio indignado.

— Mas é que o meu sonho, na verdade, sempre foi uma casa roxa... – disse Eugênia daquele jeito meigo que só as mulheres sabem fazer.

— Tudo bem, meu amor, tudo bem... – disse passando a mão na franja da esposa. – Pode escolher a cor que você quiser...

A casa ficou roxa e, sem saber, ele tinha acabado de salvar o país de uma desgraça.



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terça-feira, junho 08, 2004


Não mude de assunto, moça!

Ela deve achar que sou idiota, só pode ser isso. Porque tem que ser muito idiota para não perceber que ela está se enroscando com outro cara. Desgraçada.

Eu já estava desconfiado faz um tempo. Bastava olhar para cara dela que dava pra notar que tinha alguma coisa diferente. Quando a gente conhece bem a parceira aprende a distinguir pequenos detalhes, por isso eu já desconfiava desde o início. Ela, é claro, nunca disse nada, ficava escondendo o jogo. Muita ingenuidade a dela achar que poderia me enganar por muito tempo.

Por fim, eu tinha logo que saber a verdade. Muitos homens fogem ao máximo da prova final, eu não, só queria saber a verdade, não importava qual fosse. Desconfiava que pudesse ser alguém do trabalho, alguém da firma onde ela trabalha. Sendo assim, vesti uma roupa diferente da habitual, praticamente me disfarcei como nos filmes, e zarpei para a região da firma dela. Fiquei fazendo hora numa banca de revista com o olho atento para a saída do prédio. As pessoas iam saindo e nada dela, nessa hora tem que ter calma.

Comecei a folhear a revista quando o dono me falou que não podia fazer isso, nessa hora ela desceu do prédio junto com um colega. Larguei a revista e segui no encalço dos dois. Obviamente fiquei a uma distância, não queria que ela percebesse logo de cara, mas ainda assim podia ouvir o que diziam.

Estavam falando coisas de trabalho, nada de relevante. Ele estava levando ela até o ponto de ônibus, tentando dar uma de cavalheiro, desgraçado. Para não dar na cara, fiquei do outro lado fingindo esperar o ônibus no outro sentido, dessa forma podia espionar frente a frente.

A cena que se seguia era a mais típica possível: o cara sendo o mais bom moço possível, fazendo brincadeirinhas e tal. Ela, porém, não ficava atrás, retribuía com gracejos femininos. Vendo aquilo tudo, eu estava louco da vida. Pra mim aquilo já era mais do que o suficiente, tive que me conter para não partir para cima dos dois, mesmo assim me mantive firme.

O primeiro ônibus passou e imaginava que ela tivesse ido, que nada, logo vi que os dois continuavam se ensebando no ponto. Brincadeiras pra lá, gracejos pra cá, a coisa estava de embrulhar o estômago, mas estava querendo ver até onde ia isso.

O segundo ônibus passou e eles continuavam lá. Eu estava por demais enojado e querendo ir embora, mas quando voltei a espionar, os dois já estavam abraçados. Desgraçada, ela estava abraçada com aquele sujeito totalmente despreocupada, com a maior naturalidade, como se o que estivesse fazendo fosse certo. Era o fim da picada, pra mim tinha sido o suficiente. A casa caiu, mocinha.

Abandonei o ponto de ônibus com passos enfurecidos. Batia o pé com tanta força que até a calçada tremia. Cheguei por trás do casalzinho e fui logo puxando ela pelo braço de forma nada sutil.

— Ai! – ela exclamou se virando para mim. – O que é isso!?

O sujeito que estava com ela esboçou uma reação, mas fui logo botando ele no seu devido lugar.

— Olha aqui, rapaz, não se mete não, isso não te diz respeito. É só entre eu e ela.

— Mas o que significa isso!? – ela tomou as dores.

— E você, mocinha, depois de ficar dando esse showzinho aqui no ponto de ônibus, quem é você pra vir me dizer o dizer o que é certo.

O casal se entre olhou sem entender, quando eu fui logo botando os pontos nos is.

— Eu estava observando vocês dois há um tempão. E há um tempão vocês estão nessa ensebação, se agarrando...

— O que é que tem!? – ela perguntou, histérica.

— O que é que tem? Você acha que eu sou algum idiota, é isso? Eu estou vendo que vocês estão se enroscando. Você está me traindo!!

O sujeito a puxou pelo braço e perguntou sem entender:

— Ele é seu namorado? Você nunca me falou dele!

Completamente transtornada, ela se virou para mim e exclamou aos berros:

— Mas eu nem te conheço!!

— Não mude de assunto! Não mude de assunto!

— Eu nem conheço esse cara, eu nem conheço! – repetiu para o sujeito.

As Mulheres são assim, quando ficam sem argumentos mudam de assunto para fugir da discussão. Com essa daí não foi diferente, quando viu que eu estava com a razão, mudou de assunto, saiu pela tangente e fugiu nos braços do sujeitinho. Desgraçada. Tive vontade de xingá-la, armar o barraco. Se pelo menos soubesse o nome da infeliz...


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terça-feira, junho 01, 2004


Pichação com a melhor das intenções

— Rápido, rápido – gritou silenciosamente. – Por aqui!

Pedro seguiu mata a dentro logo atrás de Ezequiel, que era mais velho e tinha mais experiência nesse ramo.

— Tem certeza que vai dar lá?

— Claro que vai, eu sei o que estou fazendo.

Os dois seguiram passando por uma fresta no muro de um terreno baldio. O muro em si não valia a pena, já estava tão sujo e acabado que uma pichação a mais não iria fazer diferença. Sim, eles eram pichadores, mas não qualquer tipo de pichadores.

— Trouxe as coisas?

— Estão aqui – disse passando a sacola cheia de sprays.

— Legal...

— Mas, Ezequiel, onde é que vai ser? Cê disse que naquele muro não valia a pena...

— Sim, claro. O muro tava velho e sujo, a gente podia escrever que ninguém ia conseguir ler.

— É, mas e daí? Aqui não tem nada que dê pra pichar.

— Ahn é? Então dê só uma olhadinha para lá – falou apontando para o prédio ao lado.

— O hospital? A gente vai pichar o hospital?

— Isso mesmo. Não tem lugar mais apropriado do que o hospital.

— Não sei não – Pedro disse desconfiado. – Acha mesmo isso certo?

— Fica frio, garoto. Eu sei o que estou fazendo.

— Não sei o que iam achar disso lá na paróquia...

— Olha aqui – falou agarrando no braço do rapaz, estava nitidamente nervoso. – Se você quer pular fora, é só falar! Não preciso da ajuda de nenhuma donzela medrosa!

As coisas silenciaram por um instante. Depois da dura de Ezequiel, Pedro abaixou a cabeça e concordou em fazer o serviço. Além do mais, que se dane o hospital, nada mais era do que um lugar cheio de doentes. A pichação ia ser bom para eles também.

— Dá um pezinho aqui – Ezequiel pediu ajuda pra subir.

Depois de chegar lá em cima, ele estendeu o braço e ajudou o Pedro. Os dois estavam lá em cima, ao lado do letreiro com o nome do hospital. Eles tinham agora todo aquele prédio branco para pintar, aliás, pintar não, pichar. Enquanto agitava a lata, Pedro não conseguia conter o entusiasmo, aquele ia ser o maior trabalho deles.

— E aí, qual vai ser?

— Qual vai ser? Não sei, ainda não pensei nisso.

— Como não pensou nisso? Mas já estamos aqui, certo?

— Certo, mas que ainda não decidi. Qual você sugere?

— Eu gosto do 9, acho bonito.

— Não, é muito otimista, não combina com hospital.

— Então põe o 13, esse daí é bem barra pesada.

— Aí também não. A gente não quer começar uma onda de suicídio entre os pacientes. Vamos pôr o 42, não consigo pensar em nada melhor.

— E se fosse o 102? Acho até que combina...

— Bem lembrado, tem o 102! Vamos pôr o 102!!

Ezequiel começou prontamente o serviço, tinha que ser rápido para poder logo sair em segurança. Por sorte o 102 não era muito longo, deu para terminar num instante. Quando acabou, Pedro ficou admirando o resultado final, poucas vezes uma pichação tinha sido tão bem feita. Só foi interrompido por um barulho de apito.

— Xii... sujou! – Ezequiel já tinha sacado tudo.

— O que foi?

— Anda logo!

Os dois desceram no pinote, deixando todas coisas para trás. O mais importante agora era salvar a própria pele.

Quando o segurança chegou, os dois já tinham pulado o muro e escapado. Tinham a estratégia de fugir um pra cada lado e rapidinho sumirem do mapa. Não foi dessa vez que Ezequiel e Pedro foram pegos. Se refazendo do susto, os dois se encontraram novamente duas quadras pra baixo.

— Missão cumprida, chefe!

— Com a graça de Deus!

— Louvado seja! – finalizou apertando a mão do colega.

Essa foi mais um triunfo para o currículo de Pedro e Ezequiel, os “Pichadores de Cristo”. Horas depois o dia clareou calmamente, a única diferença foi no letreiro do hospital, que ganhou os dizeres do primeiro versículo do Salmo 102. Com a graça de Deus, é claro.



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